Meu nome é Bruna Rocha e, desde os 14 anos, tenho esclerose múltipla, uma condição que me coloca no chamado grupo de risco para as complicações do coronavírus. Não tem sido fácil viver nos últimos dias. Nossa vida é marcada por mudanças a todo momento — e é nessas mudanças mais bruscas que aprendemos e crescemos. Para quem, como eu, já passou pelo diagnóstico de uma doença crônica, essa perda da ilusão do controle é algo habitual.
Pessoas com doenças crônicas sabem o que é conviver com a falta de medicamentos e insumos de saúde. Idosos, doentes crônicos e indivíduos com deficiência estão cansados de ouvir quanto custam aos cofres públicos. Na pandemia atual, os membros do grupo de risco já ouviram algumas vezes quanto sua vida vale menos que a da “população saudável”.
Ainda assim, me incomoda profundamente ver no noticiário como o alto número de óbitos de pessoas com comorbidades é tido como aceitável. É aceitável porque se vê o indivíduo do grupo de risco como o outro. “Esse que morreu já era doente mesmo; já era velho”.
As pessoas com essas comorbidades têm vidas! E vidas importantes. Vidas interessantes. Vidas que valem a pena ser vividas, tanto quanto qualquer outra. E vidas produtivas, ao contrário do que muitos pensam.
Aqui em casa, somos muitos casos de risco para o coronavírus. O meu marido também tem esclerose múltipla, mas em um estágio mais avançado de degeneração, apresentando uma tetraplegia e dependência total para as atividades diárias. Ele me disse que não tem medo de morrer, mas de morrer em um tempo no qual ninguém poderá me abraçar e consolar. Em que o nosso filho de 3 anos não poderá ir correr no parque para liberar as energias e tristezas.
Seu medo não é infundado. Como ele mesmo disse: “Se eu for para um hospital e os médicos tiverem que escolher se o respirador vai pra mim ou pra alguém mais saudável, quem será priorizado?”
Meu marido tem razão. A preferência será pela pessoa sem deficiência. A preferência nunca será para mim, que tenho esclerose múltipla. Ou para meus avós, que têm 87 anos. Ou para minha mãe, que, mesmo sendo a pessoa mais ativa e saudável que eu conheço, passou dos 60 anos. Nem para a minha irmã, que tem esquizofrenia. Ou seja, nenhuma dessas pessoas que eu amo são vistas como prioridade em meio à pandemia.
Tenho vivido um turbilhão de emoções, que vão, no mesmo dia, da alegria à tristeza e ao medo. Alegria de poder compartilhar esses dias com meu filho gargalhando pela casa ao brincar de ser um astronauta. Tristeza e medo, por não saber quantos de nós estarão aqui no final disso tudo.
Além de comórbidas, eu, minha mãe e minha sogra somos cuidadoras. Quem vai cuidar dos nossos se alguma de nós ficar doente? Segundo nosso Estado, idosos e pessoas com doenças e deficiências são de responsabilidade de suas famílias. Mas e quando o familiar que cuida adoece? Como faremos um isolamento adequado dos demais? Só imagino o sentimento de culpa se alguém morresse por transmitirmos o coronavírus.
Tenho chorado quase todos os dias. Às vezes de medo, outras de raiva e tristeza. E muitas vezes de cansaço. É um cansaço físico, mas, principalmente, emocional. Por mais que eu tenha aprendido ao longo da vida que não controlo quase nada, é complicado lidar com tantas incertezas e, ao mesmo tempo, ver tanta gente achando que não é preciso ter cuidado, que o novo coronavírus é uma grande invenção.
Como a maioria das pessoas com uma comorbidade, me preocupo em manifestar uma crise da minha doença e ficar sem atendimento. Me conforta, por outro lado, trabalhar nas ONGs Amigos Múltiplos pela Esclerose (AME) e Crônicos do Dia a Dia (CDD). Nelas, acolhemos diariamente pessoas estão com suas doenças em descontrole e que não possuem cuidados médicos adequados.
Estou tomando todas as medidas de prevenção. Estou em casa por mim e por todas as pessoas que não podem estar. Estou em casa para que as pessoas que necessitem de atendimento médico sejam bem cuidadas. E para que esse pesadelo passe mais rápido.
Não sei quanto tempo ficaremos assim. Mas sei que jamais seremos os mesmos. Assim como depois de um diagnóstico. Nunca mais fui a mesma após descobrir a esclerose múltipla. E tudo bem. Porque pode ser que aquela versão anterior da gente nem fosse tão boa assim.
Independentemente de religião, eu tenho fé na humanidade. Tenho fé de que o amor e a compaixão vão nos salvar de qualquer crise social e econômica. Parece piegas, eu sei, mas acredito muito nisso. E é por acreditar nisso que sigo aqui. Sigo trabalhando e produzindo, mesmo em uma lógica econômica que, talvez, não faça mais sentido daqui pra frente.
Sigo acordando (muitos dias sem nem dormir), (mal)penteando os cabelos, cuidando daqueles a quem me cabe cuidar, inclusive de mim. Porque, no meio do caos, é importante reconhecermos nosso sofrimento, nossos medos, mas também nossas responsabilidades.
*Bruna Rocha tem o diagnóstico de Esclerose Múltipla desde 2000. É vice-presidenta da AME – Amigos Múltiplos pela Esclerose e Diretora de Comunicação da CDD – Crônicos do Dia a dia.