Um dia, acordei e percebi que a casa estava muito silenciosa. Não seria nada demais, não fosse o fato de que eu acordava todas as manhãs com o barulho da construção de um edifício em frente do apartamento em que morava. Achei esse silêncio estranho e fiz o que qualquer criança de 9 anos faria: chamei a minha mãe. Mas ela não respondeu…
Ou melhor, respondeu. Eu é que não pude ouvir. Naquela noite, tinha perdido a audição durante o sono. Provavelmente uma sequela de caxumba ou meningite. Meu caso não tem um diagnóstico preciso.
Até conseguir ouvir novamente, foram mais de duas décadas de intervalo. Nesse tempo, minha comunicação passou a ser por meio da leitura labial e minha fala adquiriu o sotaque característico de quem tem pouco ou nenhum feedback auditivo. Mas tive uma vida plena: estudei, comecei a trabalhar, viajei, casei… Só que tudo era feito em silêncio, sem a trilha sonora maravilhosa que a vida nos agracia todos os dias, em todos os instantes.
Em 2009, criei um blog sobre surdez. Não porque achasse a minha vida tão interessante. Na verdade, ela era bem comum, mas começava a ficar cansada de responder sempre às mesmas perguntas estereotipadas em relação à surdez. Não, nem toda pessoa com deficiência auditiva nasce surda ou perde audição com a idade. Não, nem todos falam com a língua de sinais. Sim, um surdo pode casar com alguém que ouve. Sim, a gente pode dirigir, ir para a balada, estudar idiomas…
Compartilhar essas experiências e informações gerou um resultado muito maior do que eu poderia imaginar. Ajudou a transformar minha história. Enquanto eu escrevia decidi fazer o procedimento para o implante coclear – uma tecnologia que recria a audição de forma artificial e é indicada a surdos severos. Meus relatos inspiraram pessoas a seguir esse mesmo caminho e a recuperar a capacidade auditiva. Recebi convites para dar palestras, escrevi um livro autobiográfico…
Mais recentemente, veio a ideia de uma segunda obra, esta destinada às crianças. E Não É Que Eu Ouvi? conta as aventuras de Lalá, uma menininha que (também) acorda sem ouvir e vive uma jornada em busca dos sons que tanto amava. Uma história toda ilustrada que ajuda os pequenos (e seus pais) a compreenderem a surdez de forma leve e poética. E toca ainda nesse passe de mágica que é voltar a ouvir o mundo.
Lak Lobato é escritora e comunicadora, autora do blog Desculpe, Não Ouvi! e do livro infantil recém-lançado E Não É Que Eu Ouvi?