Já ouviu falar em estomia? Pois bem, se essa palavra lhe parece uma incógnita, aqui vai um esclarecimento rápido: estomias são aberturas realizadas por meio de procedimentos médicos que permitem a comunicação de um órgão com o meio externo.
Um exemplo é a traqueostomia, que, por meio de uma incisão na traqueia (logo abaixo do pescoço) auxilia pacientes a assegurar sua capacidade respiratória. Outra situação bem conhecida é a colostomia, que fez com que o presidente Jair Bolsonaro tivesse de usar uma bolsa coletora após as cirurgias pelas quais passou. O equipamento tem a finalidade de coletar as fezes eliminadas pela estomia, diante de algum impedimento no intestino ou ânus.
Como enfermeira estomaterapeuta e presidente da Associação Brasileira de Estomaterapia: Estomias, Feridas e Incontinências (Sobest), defendo que falar sobre o tema requer abordar os progressos técnicos e científicos na área, lutar por direitos e, principalmente, lidar com muitos desafios.
O primeiro deles é conhecer o número exato de pessoas com estomia aqui no Brasil. Existem estimativas, mas não certezas. Calcula-se que há cerca de 400 mil brasileiros com algum tipo de estomia. É com base nesses números, aliás, que as políticas públicas são desenvolvidas.
O fato é que temos uma única Portaria do Ministério da Saúde voltada para as pessoas com estomias intestinais e urinárias. Ela visa garantir o acesso a equipamentos e assistência, tanto no serviço público como no privado. Essa medida é um importante avanço, mas ainda não assegura o número adequado de bolsas para esses indivíduos, nem o acesso direto a profissionais especializados. Os polos estruturados para atendimento ainda não são o suficientes.
E por que precisamos falar cada vez mais sobre esse tema? As cirurgias para o tratamento do câncer são o principal motivo para a realização de estomias. Mais de 60% delas são realizadas para o tratamento do câncer colorretal, que está em crescimento na população brasileira. Serão mais de 36 mil novos casos só neste ano.
Estomias também são necessárias em decorrência de cirurgias para tumores de cabeça e pescoço, próstata, bexiga, endométrio… E também fazem parte do tratamento em outras circunstâncias, como nos casos de doenças inflamatórias intestinais, diverticulite e polipose familiar, sem falar nos traumas como os provocados por acidentes de trânsito.
Um terço desses milhares de brasileiros com traqueostomias, colostomias, gastrostomias e afins tem entre 40 e 59 anos. Falamos de uma questão de saúde pública, com impacto na qualidade de vida e na economia das famílias.
Desde 2004, a estomia é considerada uma deficiência física. Mas ter se submetido a um procedimento do tipo não impede a pessoa de voltar a trabalhar, viajar, ir à praia, dançar ou mesmo praticar exercícios físicos (com algumas restrições e cuidados). Aos olhos da lei, ter uma estomia garante direitos como acesso preferencial em filas, isenção de certos impostos, bem como a adoção do símbolo nacional da pessoa com estomia, que tem como um de seus objetivos identificar banheiros ou locais adaptados.
No entanto, há um grande abismo entre a expectativa do cumprimento dos direitos e a realidade em nosso imenso país. Infelizmente, ainda não há centros e profissionais especialistas suficientes e disponíveis em todas as regiões para prover orientação e assistência.
É necessário que a pessoa aprenda o autocuidado e, quando não for possível fazê-lo, um familiar ou cuidador saiba fazer isso por ela. É essencial o acesso a uma equipe multidisciplinar, formada por médicos especializados, enfermeiros estomaterapeutas, nutricionistas, psicólogos e assistentes sociais, além do apoio da família.
Ter acesso a profissionais capacitados e aos equipamentos (bolsas, cateteres, tubos, cânulas…) é parte fundamental do processo de reabilitação da pessoa com estomia. Vivenciamos avanços importantes nos equipamentos e produtos com essa finalidade nos últimos anos. A partir do momento em que o paciente pode desfrutar deles, tem melhores condições de se recuperar e manter o bem-estar.
As estomias são consideradas a cirurgia da vida. Em decorrência de um orifício criado para tratar uma doença, se cria a possibilidade de uma nova fase, com boas perspectivas e realizações.
* Dra. Maria Angela Boccara de Paula é enfermeira e presidente da Associação Brasileira de Estomaterapia: Estomias, Feridas e Incontinências (Sobest)