O estigma em relação ao aborto ganha força e se sustenta em uma sociedade que inclui o tema nas páginas do código penal, quando ele deveria estar nas páginas da saúde pública e dos direitos humanos.
Mesmo quando há o aborto legal ou mesmo espontâneo, pessoas que gestam são discriminadas pelo ato no Brasil.
O medo de ser maltratada faz com que as mulheres retardem a decisão de ir ao serviço de saúde para finalizar o aborto, que, quando malsucedido, pode levar a uma situação de maior gravidade ou mesmo de óbito.
Não à toa, temos o aborto como uma das principais causas de morte materna no Brasil e em outros países da América Latina.
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Este retardo em procurar o serviço diante de um aborto inseguro é o que chamamos de situação limite: quando a demora em buscar o atendimento coloca a vida em risco.
Podemos relembrar a história de Ingriane Barbosa, uma jovem negra, que morreu em 2018 por infecção generalizada após recorrer a um aborto inseguro com o uso do talo de mamona. Ingriane aguardou a situação limite para procurar o serviço de saúde, mas, quando chegou lá, já era tarde demais.
A certeza das violências institucionais se confirma pelos inúmeros estudos que relatam o quanto mulheres que estão abortando, principalmente as negras, sofrem nos serviços de saúde.
Trabalhadores da saúde são os principais denunciantes, que não só criminalizam as mulheres que realizaram o aborto, como também aquelas que informam aborto espontâneo, sendo estas últimas colocadas em dúvida.
Agindo assim, médicos e enfermeiros seguem na direção contrária do sigilo profissional previsto em seus respectivos códigos de ética. Inclusive, este ano, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) afirmou que médicos não podem denunciar pacientes por aborto.
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No Brasil, mesmo que o aborto ainda seja crime, o Ministério da Saúde recomenda desde 2005, por meio de norma técnica, a atenção humanizada para pacientes em situação de abortamento.
Isso inclui um atendimento ético e reflexões sobre os aspectos jurídicos, tendo como princípios norteadores a igualdade, a liberdade e a dignidade da pessoa humana, não se admitindo qualquer discriminação ou restrição ao acesso à assistência à saúde.
Esses princípios incorporam o direito à assistência ao abortamento no marco ético e jurídico dos direitos sexuais e reprodutivos, afirmados nos planos internacional e nacional de direitos humanos.
A criminalização contamina os serviços de aborto legal, como acontece nos casos de estupro, em que as vítimas peregrinam para conseguir um serviço que realize o procedimento.
Além de serem revitimizadas, meninas e adolescentes sofrem inúmeras barreiras pessoais, institucionais, morais e até mesmo geográficas. Muitas vezes, elas precisam percorrer longas distâncias para acessar o serviço que é garantido por lei.
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No Brasil, temos menos de 100 serviços para realização de procedimentos, e eles estão situados nos grandes centros e nas capitais. Por outro lado, as periferias e as margens sofrem com os vazios assistenciais.
Por fim, a criminalização do aborto não impede sua realização, só o torna inseguro para determinados grupos. São mulheres negras, periféricas e pobres que recorrem a métodos inadequados, em locais insalubres, com o auxílio de pessoas que não são profissionais de saúde.
A morte materna por aborto é considerada evitável. Nenhuma pessoa deveria morrer por isso. Portanto, a descriminalização é uma questão de saúde pública e justiça reprodutiva. Para resolvê-la, é preciso um ambiente socialmente justo, com direitos que alcancem a todas as pessoas.
*Emanuelle Góes é epidemiologista, doutora em saúde pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e pesquisadora da Associação de Pesquisa Iyaleta.