Conversando com meu obstetra, já no início da gestação, anunciei que queria parto normal. A resposta dele, que desencadeou uma longa conversa sobre benefícios e riscos, foi categórica: “Natalia, eu faço parto normal quando tudo corre normalmente. Se algo de errado acontecer, faremos cesárea”. Tudo correu normalmente e meu bebê nasceu com 39 semanas e cinco dias, de parto normal.
Muitas amigas perguntavam se eu ia mesmo optar “pelo normal”, se não tinha medo da dor ou de sequelas, que tinham ouvido falar que parto normal trazia mais risco de incontinência urinária no futuro, ou que atrapalhava a vida sexual. Essas dúvidas circulavam entre mulheres que, supunha-se, tinham acesso à informação e condições de entender argumentos científicos. E muitos obstetras realmente recomendavam a cesárea, por considerá-la mais conveniente. Conveniente para eles, claro, mas não faltavam argumentos para persuadir as jovens mães.
Já outro grupo de amigas tentava me convencer de que o melhor mesmo era não só o parto normal, mas em casa, sem anestesia e com a presença apenas de uma doula. Ambos os grupos tinham uma importante característica comum: o tom de autoridade com tentavam ditar regras e impor palpites sobre o que consideravam ser o melhor tipo de parto.
Lei do Parto
Se essa é a realidade das gestantes brasileiras com acesso ao ensino universitário e à saúde privada, muitas usuárias do SUS normalmente não têm nem tempo, nem liberdade para expressar dúvidas. O tipo de parto tende a vir como imposição, e a experiência do nascimento é, muitas vezes, traumática e cheia de sequelas.
A mensagem, que todo bom médico – privado ou do SUS – deveria deixar claro para suas pacientes, em pré-natal, é muito clara: a cesárea é uma intervenção cirúrgica, e não uma ferramenta de planejamento para melhor acomodar a agenda do médico, do hospital ou, até mesmo, os medos da mãe. Diálogo, esclarecimento e informação são a única forma de garantir que a gestante tenha a liberdade de decidir, com base na melhor evidência possível, o que é melhor para ela e para o bebê.
Recentemente, a deputada estadual paulista Janaina Paschoal (PSL) apresentou o Projeto de Lei (PL) 435/2019, que determina a realização de cesariana a pedido da mulher, independentemente de indicação médica no Sistema Único de Saúde (SUS).
A deputada justifica o projeto de lei com base na precariedade do atendimento obstétrico de muitas unidades do SUS, em que as mulheres são constantemente vítimas de violência obstétrica, sem direito a acompanhante ou anestesia.
Outro argumento da parlamentar é de seria necessário combater a “religião” do parto natural, e o suposto fato de que a insistência do SUS por parto normal – algo por si só difícil de comprovar, já que somos o segundo país do mundo que mais faz cesáreas – estaria deixando muitos bebês com sequelas de anóxia, ou falta de oxigênio no cérebro.
A deputada não oferece dados ou números para embasar essa afirmação (uma estatística indicando um excesso de diagnósticos de anóxia no SUS, por exemplo), e a Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo diz que não existe, na literatura médica, uma correlação entre parto normal e paralisia cerebral.
Se parece louvável querer garantir um atendimento digno às parturientes do SUS, e dar visibilidade a um discurso que se contrapõe aos exageros do parto em casa, sem anestesia e de cócoras – o que só é seguro quando, como bem disse meu obstetra, tudo corre à perfeição, ou quando há uma ambulância na porta – é impossível negar que a deputada desconsidera as evidências cientificas sobre os riscos e benefícios de cada tipo de parto.
O que a ciência diz
Diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS) indicam que taxas maiores do que 10-15% de cesáreas num país não são compatíveis com um aumento da proteção da mãe. O Brasil apresenta uma taxa de 58%, a segunda maior do mundo, perdendo apenas para República Dominicana.
A cesárea é um procedimento cirúrgico de emergência, que pode salvar a vida da gestante e do bebê, quando existem complicações na gestação e no parto. Mas uma quantidade excessiva indica que, provavelmente, o procedimento está sendo utilizado sem necessidade. Como toda cirurgia, a cesárea traz riscos que não devem ser ignorados, muito menos escondidos das gestantes.
De acordo com relatório do CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos), gestantes submetidas à cesárea são mais frequentemente submetidas a transfusão de sangue, internações na UTI, histerectomia (remoção do útero) não planejada e ruptura do útero.
O risco aumenta com o número de cesáreas: assim, mulheres que tiveram mais de um filho por cesárea têm risco maior de passar por complicações ou sofrer sequelas. Mulheres com cesáreas repetidas apresentaram risco maior de histerectomia e ruptura do útero.
Além disso, nascimentos por cesárea também aumentam o risco de complicações em gestações futuras, como placenta acreta (quando a placenta adere à parede do útero), placenta prévia (inserção baixa da placenta), gravidez ectópica (quando o embrião se fixa nas trompas e a gravidez não se desenvolve), infertilidade e aderências intra-abdominais.
Todas essas complicações também têm maior probabilidade de ocorrer de acordo com o maior número de cesáreas por mulher.
A recuperação de uma cesárea também é mais demorada do que a de um parto normal, geralmente com mais dor e dificuldade de locomoção. Isso pode ser um problema, justamente, para as mulheres de classes sociais mais baixas, que muitas vezes terão de cuidar sozinhas do recém-nascido, sem ajuda de um companheiro ou de parentes.
A saúde do bebê
A cesárea deve ser utilizada se o bebê estiver em risco ou sofrimento. Mas se tudo correr normalmente, o parto normal também é vantajoso para o recém-nascido. Estudos com microbiota (o conjunto de bactérias que habita o corpo humano) demonstraram que, ao se aproximar do termo (em média, 40 semanas), o corpo da mulher começa a se preparar para o nascimento. Isso inclui uma mudança na microbiota vaginal, com proliferação de lactobacilos.
Essas bactérias têm a capacidade de digerir leite. Ao passar pelo canal vaginal, o bebê entra em contato com os micróbios, que serão os primeiros micro-organismos a colonizar seu intestino. A pele do bebê que nasce de parto normal também fica colonizada por bactérias da mãe. Já os bebês que nascem de cesárea têm sua pele colonizada pelas bactérias do ambiente, do pai, do obstetra.
Vários estudos demonstram que as diferenças na colonização que ocorre no canal vaginal podem influenciar a saúde do bebê no futuro. Bebês nascidos por cesárea apresentam risco maior de doenças como obesidade e asma. Alterações no microbioma estão associadas a inflamações crônicas e diabetes. Um dos possíveis fatores de risco é a falta das bactérias benéficas recebidas da mãe, que possivelmente estimulam o sistema imunedo recém-nascido.
O que esses dados querem dizer?
É preciso deixar claro que estes estudos sugerem um risco, e não uma garantia de doença ou uma sentença de morte. Não devemos deixar de utilizar a cesárea nos casos em que ela é indicada. Não estamos afirmando que bebês que nascem de cesárea serão todos obesos e asmáticos. A maioria das gestantes que passam por uma cesárea não terá sequelas, sangramentos, internação na UTI ou ruptura de útero.
Mas riscos existem e são reais, aumentam de acordo com o número de partos por cesárea da gestante: e no Brasil não é raro encontrar mães que tiveram três ou quatro filhos, todos por cesárea. A gestante tem o direito de ser informada sobre esses riscos para tomar uma decisão consciente e racional, durante o pré-natal, com acompanhamento adequado, e não na última semana de gestação, como proposto no projeto de lei da deputada do PSL.
E mais: já existe uma lei
Finalmente, se a intenção do projeto de lei é garantir o parto humanizado, em condições adequadas, ele é desnecessário. Já existe uma lei estadual em vigor em São Paulo, aprovada em 2015 (Lei Nº 15.759, de 25 de março de 2015), que fixa o direito da gestante a um atendimento humanizado, com acompanhante, com analgesia e pré-natal.
Se temos um problema no SUS, e a lei de 2015 não está sendo respeitada, a solução é cumpri-la, não sobrecarregar o erário com mais projetos de lei e votações. E principalmente, a solução deve ser baseada nas melhores evidências científicas, e não em opiniões pessoais.
A ciência é muito clara: a melhor opção para gestante e bebê, em condições normais, é o parto normal. Isso garante uma melhor recuperação da gestante, menor risco de sequelas e um melhor desenvolvimento do bebê. Em caso de indicação médica, a cesárea pode e deve ser utilizada. E em qualquer caso, a mãe deve ter direito garantido a um atendimento humanizado, analgesia, medicamentos para dor e informação adequada.
Não se trata de uma questão de conveniência ou rapidez do sistema. Trata-se da melhor opção para preservar a saúde da gestante e do bebê, e para garantir que toda mulher, independentemente da classe social, tenha acesso à informação e a uma experiência de parto que seja saudável e acolhedora.
*Este artigo foi publicado originalmente na Revista Questão de Ciência.