Por um lado, a expectativa dos brasileiros de ver um remédio ou uma vacina contra o coronavírus estarem disponíveis nos próximos dias demonstra uma falta de conhecimento sobre as etapas que envolvem a aprovação de um medicamento. Por outro lado, diante de uma pandemia de escala global como a que estamos enfrentando, os processos para o início dos estudos referentes à Covi-19 estão sendo agilizados – o que demonstra que é possível, e necessário, diminuir a burocracia no nosso país.
Mas o que isso nos diz sobre os desafios da produção de ciência no Brasil? A pergunta não se restringe à oncologia, o tema central da coluna “Câncer em Pauta”. Contudo, é tão relevante para a prática médica que não podemos deixar de abordá-la.
Ano após ano, é possível acompanhar os altos cortes de investimento nos órgãos de pesquisa no Brasil, o que impacta, e muito, a sua continuidade e credibilidade. Infelizmente, nosso país está na 24ª posição no ranking mundial de pesquisa clínica, com apenas 2,1% dos estudos do mundo. Nós caímos sete posições nos últimos dez anos.
A Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC) sempre defendeu com afinco a importância do incentivo às pesquisas clínicas, além de disseminar informação de qualidade sobre o tema. Afinal, quanto mais a população souber a respeito, maior a mobilização para que mudanças sejam concretizadas.
Existem dois tipos principais de pesquisas na área da saúde: a básica, realizada principalmente dentro do universo acadêmico, e a clínica, elaborada normalmente com apoio do setor privado, principalmente da indústria farmacêutica. O início desse processo se dá com os testes pré-clínicos, que avaliam a segurança em animais antes de administrar a droga em seres humanos.
Na sequência, temos três fases para que um tratamento seja considerado aprovado, com duração habitual de uma média de cinco anos, dependendo do objetivo e da medicação testada.
Cada fase do processo exige um tempo específico para garantir que o medicamento seja eficiente e seguro, o que já agrega morosidade no fluxo científico em si. Só que, atualmente, o Brasil é uma das nações mais atrasadas nos processos de autorização e condução dos protocolos de pesquisas (uma etapa anterior ao início do estudo em si). Enquanto na maioria dos países esses procedimentos burocráticos demoram de três a seis meses, aqui eles podem levar cerca de dez a 15 meses.
Esse prazo é tido como um impedimento para a realização de muitos estudos. Afinal, quando finalmente ganhamos a aprovação dos órgãos regulatórios, a pesquisa já está em andamentos em outros lugares do mundo.
Tamanha demora nos prejudica, principalmente, em duas frentes: em competitividade e como forma de obtenção de algum tratamento. No caso de câncer, por exemplo, é sabido que temos dificuldade de acesso a medicações novas devido aos custos. Isso vale tanto no SUS quanto no sistema particular. Acontece que as pesquisas clínicas são também uma forma de oferecer terapias inovadoras aos pacientes. Nos Estados Unidos, existe a cultura de se voluntariar para participar de pesquisas clínicas como alternativa de tratamento. Os norte-americanos são mais acostumados com a ideia de participar dos testes — e usufruírem disso.
Além de trabalhar para que essas defasagens sejam reconhecidas, a SBOC apoia o projeto de lei (PL 7082/2017), de autoria da senadora Ana Amélia, que visa criar princípios, diretrizes e regras para a condução de pesquisas clínicas em seres humanos por instituições públicas ou privadas. Essa mudança seria bastante positiva, pois regulamentaria a realização desses estudos no Brasil.
É importante ressaltar que os avanços mais inovadores da oncologia só foram possíveis por causa das pesquisas clínicas. A SBOC tem trabalhado para desenvolver um espaço intuitivo e acessível, que reúna informações sobre as pesquisas clínicas oncológicas em andamento no Brasil, com o objetivo de facilitar o recrutamento, a inscrição de pacientes e a interação entre médicos e pesquisadores.
Todo esse debate é extremamente relevante para a sociedade. Diante de uma pandemia, compreender o método científico por trás de um novo tratamento permite que as pessoas tenham lucidez e não se precipitem frente a qualquer novidade. Quando superarmos esse período, esperamos que a regulamentação da pesquisa clínica no Brasil seja viabilizada com mais consistência, o que permitirá maiores investimentos e saúde para nossa população – ao contrário de hoje.
*Ana Gelatti é oncologista do Comitê de Pesquisa Clínica da SBOC