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Uma epidemia de depressão

Ela já atinge praticamente 10% da população mundial e a projeção aponta um triste crescimento. Entenda por que a doença é considerada o mal deste século

Por André Biernath
Atualizado em 4 dez 2019, 10h21 - Publicado em 28 ago 2016, 14h00
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  • Em 1911, o então almirante Winston Churchill escreveu para sua esposa: “Acho que um médico pode ser útil para mim se o cachorro negro voltar. Ele parece estar distante agora, o que é um alívio. Todas as cores voltam à vida”. Estaria o futuro primeiro-ministro britânico falando em códigos sobre uma missão ultrassecreta? Não! Ele apenas popularizara o termo “cachorro negro” como uma metáfora para depressão, da qual sofria longas e duras crises. Aliás, Churchill é só um nome de uma longa lista de personalidades com um ponto comum em suas biografias: Vincent Van Gogh, Abraham Lincoln, Albert Einstein e Charles Darwin também penaram com esse transtorno em algum momento da vida.

    Mas a depressão não é uma má companhia apenas para os gênios das artes, das ciências e da política: ela atinge pessoas de todas as cores, classes sociais e faixas etárias. A Organização Mundial da Saúde (OMS) apostava que o problema seria responsável por 9,8% do total de anos saudáveis desperdiçados pela humanidade lá em 2030. Pois não é que essa estimativa foi alcançada já em 2010, duas décadas antes do previsto? Atualmente, 400 milhões de pessoas convivem com o distúrbio no planeta. Além de liderar a lista das doenças mais incapacitantes, a melancolia sem fim gera gastos na casa dos 800 bilhões de dólares por ano — o equivalente ao Produto Interno Bruto da Turquia.

    Leia também: A depressão pelos olhos de quem teve a doença

    A situação em nosso país é particularmente ruim: um levantamento realizado pela americana Universidade Harvard em 18 localidades mostra que a prevalência de depressão no Brasil é a maior entre as nações em desenvolvimento, com um total de 10,4% de indivíduos atingidos. E a taxa de mortes relacionada a episódios depressivos (incluindo suicídios) aumentou 705% por aqui nos últimos 16 anos, segundo pesquisa realizada pelo jornal O Estado de S. Paulo.

    Convém deixar clara a diferença entre depressão e tristeza. A primeira é uma doença, marcada por sentimentos de prostração, perda de interesse e prazer, culpa, baixa autoestima, distúrbios de sono e na alimentação, cansaço e déficit de concentração. Embora os médicos não conheçam em detalhes os motivos do início de uma crise — tampouco o que acontece direito no cérebro deprimido —, o quadro tem diagnóstico e tratamento. Portanto, não dá para caracterizá-lo como falha de caráter ou falta do que se preocupar. “Ainda há muito estigma, e isso só prejudica a melhora do paciente”, diz o psiquiatra Táki Cordás, do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (IPq-USP).

    Na contramão, a tristeza faz parte da natureza humana. “Ela é uma das formas como expressamos o colorido das emoções”, define o psiquiatra Luis Felipe Costa, consultor da Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos. O problema começa quando esse sentimento paralisa e impede que a vida siga em frente. Aí é preciso procurar ajuda. O escritor americano Andrew Solomon, autor de O Demônio do Meio-Dia (Companhia das Letras), obra que faz um grande retrato do transtorno, resume bem esse conceito: “O contrário da depressão não é a alegria, mas, sim, a vitalidade”.

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    Mas como explicar essa explosão de casos nas últimas décadas? Os especialistas entrevistados por SAÚDE foram unânimes em apontar o melhor diagnóstico da doença como fator principal. “Talvez ela atingisse muita gente no passado, mas, por falta de informação, ficava escondida”, avalia o psiquiatra Antonio Egidio Nardi, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mais interesse sobre o tema e médicos preparados justificariam, então, boa parte da epidemia.

    Outro ingrediente de peso é uma palavra que acompanha a rotina de quase todo cidadão: estresse. “Em estudos com ratos jovens, vemos que ele é um desencadeador de depressão na vida adulta”, observa a biomédica Deborah Suchecki, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Em humanos, a tensão e o nervosismo além da conta fazem o cortisol decolar. Quando esse hormônio se mantém alto por um longo tempo, provoca uma bagunça cerebral. Que tristeza!

    Nesse sentido, o fato de boa parte da população viver em cidades assoladas por trânsito, filas, violência e risco de ataques terroristas e catástrofes naturais faz o tal do cortisol chegar à estratosfera. O individualismo e a sobrecarga de informações que bombardeiam a cachola teriam efeito similar. “O estresse afeta a saúde mental na mesma medida que o tabagismo é prejudicial ao coração“, compara o psiquiatra Gerard Sanacora, da Universidade Yale, nos Estados Unidos.

    Pegando um gancho na fala do médico, um terceiro personagem importante dessa história é o abuso em álcool, tabaco e outras drogas. Dados de um levantamento da Unifesp de 2013 apontam um crescimento de 20% no consumo frequente de bebidas no Brasil, tendência que se repete no planeta inteiro. “A dependência química é uma das principais promotoras do transtorno”, afirma o psiquiatra André Astete, que hoje atua na Secretaria Municipal de Saúde de São José dos Pinhais, no Paraná.

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    Cabe esclarecer que a depressão depende de uma predisposição genética para se manifestar. Em outras palavras, nem estresse nem drinques a mais conseguem, sozinhos, acordar o cachorro negro. “Eles funcionam como gatilhos para o surgimento do distúrbio”, diz o médico Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria. O problema é que, na sociedade moderna, o número de fatores prontos para deflagrar uma crise parece só aumentar.

    Assim como acontece na maioria das doenças, flagrar a melancolia em seus estágios iniciais está relacionado a um tratamento mais efetivo e menos penoso. Além disso, quanto mais o quadro se prolonga, piores são suas repercussões. “Nosso desafio é encontrar os casos leves, uma vez que os moderados e graves são fáceis de perceber”, atesta Cordás. Por ora, o diagnóstico é feito no consultório, com o relato do paciente e seu histórico familiar — a ciência ainda não descobriu uma molécula no sangue que denuncia a condição com assertividade.

    Nesse sentido, a U.S. Preventive Services Task Force (USPSTF), uma comissão de estudiosos que elabora as políticas de saúde pública para o governo dos Estados Unidos, alterou a sua recomendação sobre a forma de detectar a depressão. Desde o começo de 2016, eles passaram a sugerir que os médicos — independentemente da especialidade — realizem testes de rastreamento em todos os pacientes acima de 18 anos. “Nos baseamos nos estudos em que pessoas identificadas previamente e tratadas com antidepressivos e psicoterapia obtêm uma melhora significativa dos sintomas”, justifica o epidemiologista Michael Pignone, membro do USPSTF e professor da Universidade da Carolina do Norte.

    O exame é composto de um questionário simples, com poucas perguntas. As respostas dão um indicativo de como anda a saúde mental do indivíduo. “É importante salientar que o rastreamento é só o primeiro passo. Caso o resultado inicial seja positivo, um psiquiatra realizará uma avaliação criteriosa”, completa Pignone. Infelizmente, o Brasil não possui programas do tipo e não há uma discussão sólida para que se estabeleça algo nesse mesmo modelo. “Nosso país conta com apenas 5 500 psiquiatras para um número gigantesco de queixas”, lamenta o neurocientista José Alexandre Crippa, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

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    Só é necessário tomar cuidado para não enxergar um cachorro negro onde há apenas tristeza passageira. “Também precisamos fazer diagnósticos criteriosos e não confundir depressão com uma série de transtornos com características parecidas, como a bipolaridade“, lembra o psiquiatra Pedro do Prado Lima, de Porto Alegre. Cada distúrbio pede uma tática diferente de combate — embaralhá-los, portanto, só atrapalha a recuperação.

    Esqueça a história de que a depressão é uma doença exclusiva da mente. Pesquisas começam a comprovar que seus efeitos físicos vão muito além. Podem atingir, sem exageros, o corpo inteiro. O primeiro prejudicado é o próprio órgão do pensamento. “Conforme o quadro avança, ocorre uma diminuição em estruturas cerebrais importantes, como o hipocampo, relacionado à memória e às emoções”, cita Sanacora. E essa é apenas uma de suas repercussões: o coração, as articulações e o sistema imunológico sofrem quando a melancolia se instaura de vez.

    Pesquisadores da Universidade de Granada, na Espanha, reuniram dados de 29 estudos com cerca de 3 900 pacientes para entender a fundo essas ligações perigosas. Após a análise, ficou claro que os sujeitos deprimidos carregam mais radicais livres no organismo — em excesso, esses elementos prejudicam o funcionamento das células saudáveis e abrem alas para uma coleção de encrencas. Por outro lado, substâncias antioxidantes, de efeito benéfico, se encontram em menor número. A notícia boa é que o tratamento correto traria de volta o equilíbrio a essa equação.

    O drama para o corpo é que a depressão provoca um intenso estado inflamatório. Lembra da história do cortisol nas alturas? Pois ele volta a incomodar aqui. “Junto a uma série de fatores, altos níveis do hormônio baixam a imunidade e aumentam a propensão a artrite reumatoide, problemas cardiovasculares e até câncer”, alerta Costa. O risco sobe nos casos em que o transtorno se desenvolve por anos a fio, sem nenhum contra-ataque adequado. Segundo Costa, médicos australianos testam inclusive o uso de anti-inflamatórios em parceria com os antidepressivos como uma forma de abreviar o tempo de resposta ao tratamento.

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    A relação entre melancolia e males cardiovasculares é particularmente forte. Uma investigação realizada pela Universidade de Bordeaux e sete outras instituições francesas acompanhou 7 313 indivíduos entre 1999 e 2001. Todos eles foram avaliados em quatro oportunidades distintas ao longo desse período. Aqueles que apresentavam altos índices de sintomas depressivos em todas as ocasiões tinham um risco 75% maior de sofrer um infarto ou um acidente vascular cerebral, o AVC.

    E olha que o caminho contrário também pode ocorrer: uma desordem qualquer pode ser o gatilho para um abalo psíquico. “Grupos com algum problema crônico se apresentam mais deprimidos que a população geral”, afirma Astete. Foi o caso do escritor Andrew Solomon: após a morte de sua mãe e o fim de um relacionamento amoroso, uma crise de pedra nos rins foi a gota d’água para que o transtorno emergisse. “Senti o controle de minha própria vida escorregar das mãos. `Se essa dor não parar’ disse para um amigo, `vou me matar’. Eu nunca tinha dito isso antes”, escreveu.

    Os tratamentos para depressão mudaram muito ao longo da história. Capacete de chumbo, couve-flor, gengibre, hidromel, mirra, banana-da-terra, masturbação e até um cano pingando água ao lado do doente já foram prescritos. É curioso notar também que os remédios surgiram há menos de 70 anos. Em geral, eles agem no cérebro e aumentam a presença de neurotransmissores relacionados à sensação de bem-estar. “As classes medicamentosas prescritas atualmente partem do princípio de que há menos substâncias essenciais, como a serotonina, para o bom funcionamento dos neurônios”, resume Deborah Suchecki.

    A recuperação pode levar alguns meses ou até mesmo ser contínua. Nesses casos, o paciente toma uma dose de manutenção pelo resto da vida, para se certificar de que a depressão não voltará. “Quem teve uma primeira crise possui 50% de chance de sofrer outra no futuro”, calcula Crippa. Caso o segundo episódio ocorra, a probabilidade de um terceiro sobe para 70%. Se o terceiro acontecer, o risco de um quarto chega a 90%. O sujeito que já passou por quatro momentos depressivos com certeza terá um quinto se nada for feito.

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    Isso só aumenta a importância de não abandonar a terapia pela metade. “Há um grande perigo de retorno, e com maior gravidade, se o paciente desistir no caminho”, alerta o psiquiatra Fernando Fernandes, do Programa de Transtornos Afetivos do IPq-USP. Os comprimidos demoram três semanas para trazer melhoras. Porém, os pequenos ganhos iniciais não significam cura. É preciso seguir direitinho a orientação do especialista para não sofrer recaídas.

    Nessas horas, é usual pedir apoio à psicoterapia, que se vale de técnicas de expressão dos sentimentos e orientações para trazer alívio. Nos casos leves, ela chega a dar conta do recado sozinha e até dispensa fármacos. “E, mesmo em situações avançadas, esse tipo de tratamento é um aliado primordial da terapia medicamentosa”, ressalta Silva.

    Em breve, novas opções reforçarão o arsenal terapêutico. É o caso do neuropeptídeo Y e da ocitocina, duas substâncias que mostraram eficácia no combate à depressão em testes iniciais. “A vantagem desses candidatos é uma ação rápida em relação às drogas disponíveis hoje, destaca Deborah. Nos estudos, elas foram administradas por meio de um spray nasal: a mucosa do nariz está cheia de terminações nervosas, o que faz a droga alcançar o cérebro com maior velocidade.

    Contudo, de nada adianta apelar para novos medicamentos sem o suporte de familiares e amigos. “A certeza de apoio em um momento de extrema dificuldade é a chama de esperança para muita gente”, reflete Nardi. Afinal, o tratamento não vai matar o cachorro negro. O objetivo é ensinar o paciente a lidar e conviver com ele diante das situações difíceis que aparecem pela frente. Amor e carinho são essenciais para que tudo dê certo. Com eles, o cão negro amansa e a vida se desvencilha da depressão para abraçar a vitalidade.

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