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Paulo Saldiva: “A gente já sabe 99% do que precisa sobre poluição. Falta ação”

Uma das maiores referências internacionais em saúde urbana, o médico paulistano revisita sua trajetória e os desafios pela frente

Por Luiz Paulo Souza
Atualizado em 23 jul 2025, 14h12 - Publicado em 23 jul 2025, 09h52
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Nomeado membro da Academia Mundial de Ciências, o médico brasileiro Paulo Saldiva rememora sua carreira em entrevista à VEJA SAÚDE (Carol D'Avila/Veja Saúde)
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Nos anos 1970, a saúde do planeta e a da humanidade andavam um tanto quanto descoladas. Ao menos sob a ótica dos médicos. Poucos deles furaram essa bolha e, com um olhar visionário, começaram a investigar em que medida os problemas ambientais repercutiam em nosso organismo.

Um desses precursores é o brasileiro Paulo Saldiva. Seus insights e estudos foram preciosos para demonstrar como a poluição urbana afeta o corpo humano.

Professor da Universidade de São Paulo (USP) e apaixonado pela capital paulista, onde nasceu e cresceu, Saldiva juntou seu conhecimento como patologista a uma visão apurada da cidade para descortinar como um mundo assombrado por poluentes, agrotóxicos e aquecimento global também nos torna mais doentes.

Aos 71 anos, superando uma operação e infecção no joelho, o docente não pretende se aposentar do contato com a nova geração de alunos. Nesta entrevista, ele reflete sobre o seu percurso dentro e fora da academia e conclama ação política para conter a crise atual.

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Como recebeu a notícia de que foi nomeado para a Academia Mundial de Ciências em 2025?

Foi uma surpresa para mim. Talvez tenha a ver com o fato de eu nunca ter tido disciplina acadêmica formal. Não sou um cientista convencional. Sou um médico que dá aulas e faz ciência.

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Mas talvez essa combinação, que me permitiu dirigir o Instituto de Estudos Avançados da USP, coordenar programas na Fapesp, atuar no laboratório e com pacientes, estudando desde a desigualdade social até o impacto do ambiente na saúde pública, seja o que justifique minha indicação.

O senhor tem um interesse científico bastante plural, não?

Eu diria que, para um cientista, sou um exemplo de antifoco. Enquanto a maioria aprende a se especializar, meu método é diferente: quando surge algo interessante, começo a trabalhar naquilo.

Porém, quando aparece alguém melhor do que eu naquele pedaço, passo a bola para ele. Meus pilares na carreira sempre foram dar aula, fazer diagnósticos e nutrir essa paixão por cidades.

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Como começou essa intersecção entre o seu trabalho como patologista e o estudo da poluição e da saúde urbana?

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Minha trajetória começou com pesquisas sobre a asma. Mergulhei nesse tema no final dos anos 1970. Começamos com estudos em animais, depois testes de exposição controlada e seguimos com pesquisas epidemiológicas. Formamos um grupo de trabalho forte.

E, na Faculdade de Medicina da USP, temos o maior serviço de autópsia do mundo. Ali comecei a notar nos pulmões analisados aquela impregnação de carbono que vemos em fumantes, mesmo em pessoas que não fumavam.

Quando quantificamos aquilo, percebemos que o tempo no trânsito era um fator crucial. Assim, passei a “ler” a cidade através do que via nos corpos.

E essa vocação e a ligação com a cidade o projetaram?

Tenho um caso de amor com São Paulo. Virei até fotógrafo de rua e pedalo muito pela cidade. Para mim, a cidade é um organismo vivo, com seus próprios órgãos e sistemas. Essa visão me levou a estudar a saúde urbana, uma área com poucos médicos.

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Acho que justamente por ser um dos poucos nesse campo meu trabalho ganhou destaque, seja por analisar como as doenças se espalham ou o efeito das ilhas de calor e dos poluentes nos cidadãos, seja por me debruçar sobre os problemas do acesso à saúde.

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Hoje já está devidamente sedimentada essa noção da influência da cidade e da poluição na saúde?

Olha, a gente já sabe 99% do que precisa sobre poluição e saúde. Se quiser fazer um novo estudo, até pode, mas o problema não é mais falta de pesquisa. Agora é preciso ação política. A gente começou a recolher esses dados nos anos 1970.

São 50 anos de trabalho, o que falta agora é enfrentar os interesses. Mas tenho minhas esperanças. As manifestações de 2013 foram um marco, porque colocaram o transporte público na pauta. Demorou, mas hoje corredor de ônibus dá voto.

E as novas gerações já pensam diferente das anteriores.

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Médico patologista da USP estudo o impacto da poluição na saúde humana há mais de três décadas (Carol D'Avila/Veja Saúde)

Mas tem solução para um problema tão complexo?

O pulo do gato está em repensar as cidades. Se a gente ocupar direito o centro, misturando gente em vez de segregar, já vai aliviar muito o transporte, por exemplo.

Mas, no fundo, tudo isso requer uma mudança de mentalidade, como quando a gente fala que saúde não é só remédio, é hábito também. E a medicina tem que entrar nessa. Por isso a gente já publica hoje trabalhos em periódicos como The Lancet e New England [revistas médicas altamente reputadas].

O médico precisa entender que meio ambiente tem tudo a ver com saúde pública. E, para a população, quando o assunto vira o medo de morrer, acho que conseguimos mexer mais com as pessoas.

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É preciso lembrar que a poluição não é algo que te faz cair duro na hora, mas você respira aquilo o tempo todo.

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Em que medida a desigualdade social se envolve nessa história?

São os mais vulneráveis que sofrem. Os que estão nas periferias. Nas nossas autópsias, calculamos que quem perde de duas a três horas no trânsito por dia inala o equivalente a pouco mais de dois cigarros. Parece pouco, mas já faz diferença.

Durante a pandemia de covid, percebemos que quem morria era quem mantinha a cidade funcionando — trabalhadores do comércio, do setor de limpeza, entregadores…

Em termos de fatalidade, o CEP importava mais que a cepa. Por isso digo que a cidade é também um laboratório de vulnerabilidade social.

O senhor conseguiu encontrar paz nesse período tenebroso da covid?

Minha bicicleta virou terapia. Moro no Bixiga e pedalava até a faculdade. Após ver mortes, crianças e famílias desesperadas, rodar por São Paulo vazia me salvou a sanidade. Reencontrava a cidade da minha memória.

De novo a cidade… Não há como separar seu trabalho dela, né?

Comecei a estudar os pulmões como médico porque sou asmático e sentia na pele quando piorava. Então posso dizer que minhas características pessoais estão no coração do meu trabalho científico.

Muita gente esconde seus interesses, com medo de parecer pouco sério, mas perde a chance de mostrar como a ciência é falível. Olhe o Manual Merck, com seus 110 anos de história.

Quando comparamos edições antigas, vemos o que saiu: ginecologia escrita por homens, doenças mentais mal compreendidas, tratamentos que hoje parecem absurdos.

Essa evolução mostra que a ciência avança reconhecendo sua ignorância. Se não soubermos o que não sabemos, não haverá progresso.

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A humildade, então, é crucial a um médico e cientista, certo?

Na medicina, mesmo lançando mão dos algoritmos hoje, a patologia nos lembra que nada é absoluto. É como tocar gaita: você ensaia, ensaia, e tem dias que não sai. Essa humildade é essencial para aprender e ensinar. Hoje atuo com urbanistas. Faço diagnósticos, mas as intervenções exigem participação comunitária.

Também estou conhecendo a realidade das UBS com meus alunos. Depois de tantos trabalhos e publicações, você percebe o que realmente importa. A finitude nos faz repensar nosso propósito. 

O senhor também estampou os noticiários em 2014 quando participou da comissão que apurava casos de violência e abuso sexual entre estudantes dentro da USP. Como foi essa experiência?

Bom, eu estava em Boston, nos Estados Unidos, quando fui procurado por uma aluna dizendo que tinha sido estuprada e a faculdade não tinha feito nada. Aí montaram uma comissão pra estudar o consumo de álcool pelos estudantes, até porque o episódio tinha ocorrido numa festa com bebida.

Só que eu, que sempre fui próximo dos alunos, cheguei para essa comissão e disse: “Isso não é só álcool. É muito maior!” Começamos a apurar e apareceu tudo. Foi aí que percebi que tinha falhado como professor, porque vivi ali dentro e não conhecia essa realidade.

Então eu fiz um relatório dizendo que a gente tinha que investigar esses casos, estabelecer limites e assumir a liderança para arrumar a casa e prevenir novos problemas.

E qual foi a reação da universidade?

O então diretor nunca colocou aquilo em pauta. Mas chegaram até a criar uma CPI [comissão parlamentar de inquérito]. Eu fui, mas a maioria dos professores não foi. Eles acharam que eu estava exagerando.

Saí da USP puto, dizendo que não voltaria mais pra lá. Só retornei quando me convidaram para ser vice-diretor do Instituto de Estudos Avançados.

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Mas as coisas mudaram na USP e em outros ambientes universitários, não acha?

Quando voltei para a faculdade depois de cinco anos, fiquei um tanto deslocado. Mas, quando veio a covid-19, pensei: “Nisso eu posso contribuir”. E aí me envolvi em diversos estudos e ações.

Depois que aquele episódio todo passou, acho que a universidade percebeu que tinham sido injustos comigo. E, sim, houve mudanças. A causa e os coletivos cresceram muito. Não dá mais para fazer os absurdos de antes. Está bem melhor!

A inclusão e a diversidade, pautas tão caras a uma cidade e a uma sociedade melhores, conseguiram se estabelecer dentro dos muros da academia?

No nosso programa de inclusão da USP, o aluno que é contemplado tem uma performance muito próxima da do aluno que entra via vestibular tradicional. E eu não preciso explicar para ele o que é ser pobre, porque ele viu a família passando dificuldade. Agora, essas faculdades particulares mais caras me preocupam.

Primeiro, pelo aspecto da formação. Tem algumas muito boas, mas tem outras que não são. E também tem o aspecto da vivência. Eu venho de uma família de médicos bem-sucedidos. Morava numa área nobre de São Paulo que era da Faria Lima para cima, da Rebouças para a direita e da Brigadeiro Luiz Antônio para a esquerda. Essa era a minha cidade.

Na primeira semana do curso de medicina, quando entrei no pronto-socorro do Hospital das Clínicas, minha visão das coisas mudou e decidi ficar no hospital público porque sabia que ali eu faria diferença.

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“Calculamos que quem perde de 2 a 3 horas no trânsito por dia inala o equivalente a pouco mais de dois cigarros. Parece pouco, mas já
faz diferença [na saúde]”, afirma Saldiva (Carol D'Avila/Veja Saúde)
Por falar nas faculdades, o que anda faltando nos cursos de medicina hoje?

Duas coisas vão influenciar o currículo médico ainda mais. O primeiro é o ensino de humanidades. Não me refiro a um curso teórico de filosofia, mas em trazer para a sala aspectos sociais para serem discutidos com os alunos.

O segundo é um componente hoje mais forte na enfermagem, que é ensinar a pôr a mão na pessoa, a fazer curativo, a virar um paciente acamado na UTI. A inteligência artificial pode nos ajudar a dar diagnósticos, mas não vai substituir o lado mais humano da profissão.

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Falando em paciente, o senhor passou por uma grande cirurgia recentemente. Como foi trocar de lado?

Ah, eu tive um tremendo azar. Logo que entrei no Instituto de Estudos Avançados da USP, coloquei uma prótese de joelho. Assim que virei diretor, durante uma crise financeira na USP, dispensei todos os carros e motoristas. Comecei a ir de ônibus ou de bike ao trabalho. E aí sofri uma queda.

Só que meu joelho já era ruim, porque eu praticava muito esporte e tinha tido uma lesão grave anteriormente. Enfim, ainda dava para pedalar, mas a situação foi piorando até que, alguns meses atrás, eu operei.

Estava indo tudo bem, mas peguei uma infecção no hospital que me obrigou a tirar a prótese. Agora tô sem joelho, digamos assim, esperando o osso se recuperar para colocar outra prótese.

Ser médico, particularmente um patologista, ajuda ou atrapalha nessas horas?

Já fiz um monte de autópsia com lesões parecidas com as minhas ao longo da carreira. Então sempre imaginei como seria. Quem lida com a morte, como eu, acaba pensando muito nisso. E, na verdade, vejo com uma tranquilidade absurda.

Quando achei que ia morrer no hospital, até mantive o bom humor. Agora, não deixa de ter um aspecto angustiante. Sou médico e vivenciei algo que estava dando errado. Além disso, sempre fui muito ativo. E tive que dar uma pausa. 

Como tem lidado com essa pausa forçada?

Ficar parado assim me fez voltar a estudar, a tocar música, a ler literatura… E estou me adaptando à ideia de que, se não puder mais andar de bicicleta, vou ter que arrumar outra coisa.

Bike, trabalho, aposentadoria… Quais são suas expectativas para o futuro?

Então, eu quero continuar dando aula na graduação. Hoje atuo meio que como um promoter. As pessoas vêm com projetos e eu ajudo a colocá-los de pé, especialmente aquilo que diz respeito a clima e poluição. Vou fazer isso enquanto der. Mas tem uma coisa que é importante pra mim: não quero passar o pessimismo da minha geração para os jovens.

 

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