A Proposta de Emenda Constitucional 10/2022, também conhecida como PEC do Plasma, voltou aos holofotes do Senado Federal. O texto visa autorizar o uso do plasma, um dos componentes do sangue, para comercialização pela iniciativa privada, o que divide opiniões.
“No Brasil, a legislação não permite que se colete o plasma e se utilize em escala industrial pela iniciativa privada. Por outro lado, cada vez mais os medicamentos derivados dele são necessários”, opina o hematologista Dimas Covas, membro da diretoria da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH).
A ABHH é a favor da atualização do texto, mas contra um de seus pontos mais polêmicos, a doação remunerada. “Entendemos que o excedente atual de plasma proveniente da doação voluntária de sangue não é devidamente aproveitado”, afirma, em nota, a entidade.
Hoje, esse tipo de transação é proibida pelo artigo 199 da Constituição Federal, assim como ocorre com a doação de órgãos.
A nova proposta altera esse artigo e, assim, o indivíduo poderia ganhar dinheiro para doar o plasma. Depois, o líquido seria processado e comercializado pelas indústrias farmacêuticas.
A Hemobrás, estatal que fornece os derivados do plasma a quem precisa hoje no Brasil, é contrária ao texto. “A doação de sangue de forma altruísta e voluntária é uma cláusula pétrea que não deve ser alterada”, diz Antônio Edson de Souza Lucena, presidente da Hemobrás.
A nota oficial da companhia também afirma que o projeto de pagamento para obtenção de plasma poderá afetar o equilíbrio do sistema transfusional acarretando, por consequência, indisponibilidade de sangue aos hospitais.
A seguir, explicamos um pouco mais sobre esse imbróglio.
O que é o plasma e como ele é utilizado na medicina?
O plasma é um dos componentes do sangue. “Se você separa os glóbulos vermelhos, brancos e plaquetas, sobra uma parte líquida, onde estão substâncias importantes, como anticorpos, proteínas, fatores de coagulação, entre outras”, elenca Covas.
Uma parte pequena do plasma é aproveitada diretamente na transfusão sanguínea, mas são poucas as indicações clínicas disso.
A maioria da substância precisa ser trabalhada por uma indústria para obter medicamentos chamados de hemoderivados. Eles são usados para tratar hemofilias e imunodeficiências primárias, por exemplo.
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Como ele é obtido hoje no Brasil?
Pela sobra das transfusões sanguíneas oriundas de doações voluntárias em bancos de sangue públicos ou privados.
Hoje, toda a gestão desse sistema é feita pela Hemobrás, que coleta o plasma excedente e envia para um parceiro no exterior que fabrica os hemoderivados. A estatal está construindo seu próprio complexo industrial, mas ele só deverá funcionar a partir de 2026.
Com as mudanças na lei, empresas da rede privada poderiam coletar e fabricar os medicamentos. Mas uma das ideias do texto é que a indústria nacional se desenvolva para fornecer os hemoderivados principalmente para o Sistema Único de Saúde (SUS).
“Somos totalmente dependentes da importação de produtos que são caros, o que limita a disponibilidade do tratamento e o desenvolvimento de uma indústria que poderia gerar empregos e lucro ao país”, aponta Dimas.
Hoje, a Hemobrás atende a 94% das necessidades do Programa Nacional de Coagulopatias, 50% da necessidade de albumina humana e 30% das compras de imunoglobulina.
Na visão de várias entidades, entre elas o Conselho Nacional de Saúde (CNS), o ideal para resolver esse déficit seria investir no fortalecimento da própria Hemobrás.
A questão da venda do sangue
A questão da comercialização do plasma, a ser mais bem definida em lei cuja elaboração está prevista na PEC, é a mais delicada.
Hoje, nos Estados Unidos e em outros países, a indústria compra plasma — em geral, de indivíduos em condição de vulnerabilidade social.
Em nota do CNS, um de seus conselheiros afirma que a PEC pode nos fazer “regredir à década de 1970, onde os mais pobres e vulneráveis doavam sangue em troca de dinheiro. Isso rompe também o ato de altruísmo e empatia que se tem na doação”.
Covas concorda com essa visão. “A doação deve ser altruísta, mas podemos adotar medidas que a incentivem, como o custeio de despesas de locomoção e alimentação, além de dispensas no trabalho”, comenta o diretor da ABHH.
O diretor reforça ainda que o Brasil “paga caríssimo por hemoderivados, que estão remunerando diretamente doadores americanos. É uma questão que não é simples e não será resolvida por uma PEC, mas precisamos começar a discussão”.
Há desperdício de plasma no Brasil?
Um dos argumentos das entidades favoráveis à PEC é a de que a maior parte do plasma colhido hoje é descartado. Algumas notícias divulgaram a porcentagem de 85% de desperdício.
Lucena, presidente da Hemobrás, esclarece que hoje, no setor público, não existe desperdício de plasma excedente. “Todo material apto ao fracionamento obtido em bancos públicos é aproveitado e fornecido ao SUS”, comenta.
Estima-se que um terço do sangue coletado no país venha do setor privado. No entanto, pouco se sabe da real quantidade produzida pelo setor. Por lei, todo o excedente deveria ser enviado à Hemobrás.
“A Hemobrás vê com muita preocupação a possibilidade de um percentual significativo não estar sendo aproveitado a contento e tem atuado incansavelmente para que os bancos de sangue privados não descartem plasma”.
Próximos passos
O texto está em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ). Ele deveria ter sido votado pelos membros da CCJ nesta quarta (13), para então ser enviado à Câmara dos Deputados para a votação da PEC em si.
As divergências entretanto, estão adiando a tramitação do projeto. A discussão na CCJ foi reagendada para semana que vem.