Os impactos da hemofilia para as crianças brasileiras
A jornada desafiadora enfrentada pelos pequenos pacientes, seus cuidadores e familiares

Viver em constante atenção, preparado para atender a uma emergência a qualquer momento.
Se você imaginou que essa era a rotina apenas dos médicos, se enganou. Esse é o dia a dia dos familiares e cuidadores de uma criança hemofílica, que se mantêm atentos ao deixá-la na escola, na casa de um amiguinho, nas festinhas, passeios escolares e em qualquer outro lugar, sempre preocupados com a possibilidade do pequeno cair e se machucar.
Sim, porque no caso dos portadores de hemofilia, as consequências de um tombo ou tropeço vão muito além do joelho ralado e do choro. Para eles essas aventuras tão naturais da infância podem causar sangramentos e até mesmo problemas mais graves1,2.
Mãe de um jovem hemofílico, Mariana Leme Battazza conta que , por volta dos 5 anos, seu filho era bastante agitado. Adorava correr, jogar bola, andar de bicicleta e muitas vezes caía, batia a cabeça ou mordia os lábios. “Eu vivia constantemente preocupada. Por diversas vezes ele sofreu sangramentos articulares3, que são mais comprometedores, e precisou fazer repouso e receber doses extras de medicamento”, ela lembra.
Presidente e fundadora da ABRAPHEM (Associação Brasileira de Pessoas com Hemofilia), ela destaca o equilíbrio necessário para não superproteger o filho enquanto permitia que ele tivesse uma infância normal. “Era difícil deixá-lo viver uma infância normal e, ao mesmo tempo, evitar que se machucasse”.
Por dentro da doença
Os portadores da hemofilia A, como o filho de Mariana, apresentam uma alteração genética no qual o sangue não coagula adequadamente e há riscos de sangramento sem controle, iniciado tanto espontaneamente como a partir de um pequeno trauma1,2.
“A condição é provocada por uma mutação genética que leva à escassez ou à falta de proteínas responsáveis pela coagulação do sangue. No caso da hemofilia tipo A, a mais comum, o problema se encontra no fator VIII — na do tipo B, o organismo não produz o fator XIX”, explica a Dra. Christiane Pinto, hematologista pediátrica do Serviço de Hemofilia e Coagulopatias Hereditárias da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Na maioria dos casos a hemofilia é hereditária, geralmente transmitida de uma geração para outra através de um gene recessivo presente no cromossomo X. Ou seja, normalmente o distúrbio passa da mãe para o filho do sexo masculino1,2.
“E aí, além de toda a tensão para cuidar e proteger a criança, a mãe ainda precisa lidar com a culpa por, mesmo involuntariamente, ter transmitido a condição ao filho”, destaca Mariana.
Riscos desde cedo
Já no início da vida o bebê e seus familiares se deparam com episódios de sangramentos difíceis de controlar, bem como com o aparecimento de manchas roxas pelo corpo — um indicativo de que o sangue extravasou internamente1,2.
O quadro se torna ainda mais intenso quando o bebê dá seus primeiros passos e há maior chance de sofrer quedas e trombadas. À medida que começa a correr, jogar bola e andar de bicicleta, os tombos e impactos aumentam, e na mesma proporção, crescem os riscos para a criança hemofílica.
“Não à toa os sangramentos mais graves, como os intracranianos, ocorrem com maior frequência na infância. Além da possibilidade de repercussões neurológicas definitivas, esses traumas colocam a vida do pequeno em risco”, alerta Dra. Christiane.
As complicações envolvem não só sangramentos prolongados, hematomas e inchaços nas articulações, como também hemartroses e hemorragias intramusculares– sangramentos nas articulações e nos músculos, que causam dor e inchaço especialmente no joelho, tornozelo, cotovelo e quadril3,4.
Outro cenário preocupante é a Síndrome Compartimental, uma condição médica grave, provocada por fatores como a dificuldade no acesso, traumas ou lesões. Para o paciente hemofílico essas agressões podem levar a sangramentos internos e aumentar a pressão dentro de um compartimento muscular. Como consequência, há prejuízos para o fluxo sanguíneo e nutrição dos tecidos, além de danos aos músculos e nervos. Se não diagnosticada e tratada rapidamente, essa síndrome causa perda de função do membro afetado ou até necrose dos tecidos5.
Os desafios da terapia
Hoje há intervenções voltadas à prevenção (profilaxia) ou controle dos sangramentos. “Elas consistem na reposição do fator que o paciente não produz. No caso da hemofilia tipo A é o fator VIII, enquanto na hemofilia tipo B é o fator XIX”, conta a médica.
E aí está mais um importante desafio para o hemofílico e seus familiares, uma vez que a infusão endovenosa, por si só, já é bastante sofrida. “Se muitos adultos têm medo de agulhas, imagine o que significa para o pequeno ser espetado cerca de 3 vezes por semana”.
Ela explica que o acesso venoso é particularmente difícil nas crianças e pode trazer outras preocupações. “Algumas vezes, na tentativa de conseguir o acesso, as punções repetidas ocasionam sangramento dentro do músculo dos braços. Esse músculo comprime veias, artérias e nervos, gerando a síndrome compartimental e o risco de perda de função definitiva do membro afetado”, explica a médica.
Diante dos riscos e dos receios que envolvem a condição e da necessidade de um controle rigoroso, é de imaginar que não são poucas suas repercussões na rotina dos pacientes e familiares. Para entender a fundo esse cenário, VEJA SAÚDE uniu-se a outras entidades para realizar a pesquisa Um Retrato da Hemofilia no Brasil6.
Elaborado em 2022, o estudo revelou, por exemplo, que 98% dos entrevistados se sentem atribulados com a terapia, sobretudo a frequência e a forma de aplicação. “O choro dos filhos chega a desestruturar os pais”, afirma a médica.
Entre os principais desafios enfrentados pelas famílias em relação à terapia baseada em infusão na veia estão: a frequência de aplicação do medicamento (66%), a forma de aplicação (62%), a aceitação da criança (29%), dificuldades financeiras com a terapia (23%), dificuldades de deslocamento até o hemocentro (22%) e pouco conhecimento sobre como lidar com as intercorrências6.
Uma rotina desgastante
Os medicamentos para a hemofilia são oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e distribuídos por uma rede de hemocentros. Entretanto, a realidade para deslocamento a esses hemocentros é variável. A pesquisa revelou que um terço dos entrevistados visita esses centros pelo menos uma vez por mês, enquanto 58% contam que gastam mais de uma hora no deslocamento até o local6.
Para seis em cada dez familiares, a ida ao hemocentro dura entre uma e três horas, sendo que parte considerável desse tempo corresponde à espera para ser atendido6.
Os pacientes da hemofilia muitas vezes dependem do transporte fornecido pela prefeitura, o “transporte fora do domicílio -TFD”, o que pode significar longas esperas. Em alguns casos, os pacientes que chegam para consultas matinais acabam esperando até o final da tarde pelo transporte de retorno, já que o serviço atende múltiplos pacientes de diferentes hospitais e especialidades.
Caso o paciente não consiga realizar o tratamento, também há impactos para a família, com mães tendo que abandonar seus empregos para cuidar de seus filhos.
Impactos na jornada do paciente
A evolução no acompanhamento e cuidado em saúde pode trazer mudanças significativas para a rotina dos pacientes e suas famílias.
Com esse novo contexto, Mariana compartilha como essa evolução impactou sua vida em família. “A dinâmica mudou totalmente. Além de evitar o deslocamento até o hemocentro, ganhamos liberdade para poder viajar”, ela diz.
Hoje com 23 anos, o filho de Mariana já tem uma rotina diferente. Mas, até chegar a essa fase, os desafios foram enormes. Como vencê-los? “Acho que o primeiro passo é aceitar a condição e se informar, conhecer o que é a hemofilia, como ela se manifesta, saber identificar quando a criança tem um sangramento, aprender a cuidar. Quanto mais informada você estiver, mais capacitada estará para auxiliar seu filho e mais seguro e engajado com esse cuidado ele ficará”, aconselha.
Referências
- Federação Brasileira de Hemofilia. A hemofilia. Disponível em: https://www.hemofiliabrasil.org.br/a-hemofilia. Acessado em 14/4/2025.
- ABRAPHEM (Associação Brasileira de Pessoas com Hemofilia). O que é hemofilia. Disponível em: https://abraphem.org.br/o-que-e-hemofilia-e-porque-ocorre/. Acessado em 14/4/2025.
- ABRAPHEM (Associação Brasileira de Pessoas com Hemofilia). Sangramento articular ou hermatrose. Disponível em: https://abraphem.org.br/para-pacientes/hermatrose-articulacao-alvo-e-artropatia . Acessado em 14/4/2025.
- Sen D, Chapla A, Walter N, et al. J Thromb Haemost. 2013 Feb;11(2):293-306
- World Federation of Hemophilia (WFH) Diretrizes da WFH para manejo da hemofilia. 3ª edição. Disponível em: https://www1.wfh.org/publications/files/pdf-2142.pdf. Acessado em 14/42025.
- Roche. Um retrato da hemofilia no Brasil. Disponível em: https://www.roche.com.br/por-dentro-da-roche/um-retrato-da-hemofilia-no-brasil. Acessado em 14/4/2025.
[M-BR-00019147] Abril 2025