Nem heróis nem vilões: sobre mosquitos, vírus e homens
Edição de novembro aborda uma das maiores ameaças a ganhar força com as mudanças climáticas, as doenças transmitidas por mosquitos
É uma tendência intrínseca ao ser humano atribuir qualidades morais a outras criaturas com as quais compartilha a natureza — algo que as fábulas e os contos de fadas expõem à máxima potência. Também é uma estratégia de defesa evolutiva, conectada a sensações como medo e asco, que nos instigam a evitar o contato com aquilo que, em tese, nos faz mal.
Não é à toa que, desde priscas eras, nossa espécie coloca uma legião de insetos na zona inimiga. Ora, eles podem picar, zumbir, envenenar, devastar plantações, transmitir doenças… Hoje, muito provavelmente, é pela particularidade de disseminar vírus e outros parasitas que bichos como mosquitos despertam receio, apreensão e raiva na humanidade.
Mas digamos que eles nem fazem isso de caso pensado… Afinal, só para citar um exemplo, as fêmeas do Aedes aegypti, nosso velho conhecido, disseminam a dengue ao tentar se alimentar do nosso sangue. A rigor, nem o vírus da dengue, nem nenhum outro micróbio, quer acabar com a gente — se esse fosse o objetivo, ficaria sem casa e comida.
O que ele quer é se reproduzir, formar cópias e lançar seus genes egoístas para o Universo. Inevitavelmente, porém, entre uma picada e uma infecção, hospedeiros cairão… de cama.
O fato é que a natureza não opera numa lógica maniqueísta. É difícil resistir a esse raciocínio, sobretudo quando somos nós que ficamos doentes, mas não existem heróis e vilões do ponto de vista biológico. É a lei da selva genética, em que uns se aliam, outros lutam entre si. O sentido, se houver sentido, é prosperar e dar continuidade a essa grande cadeia chamada vida.
Tais ideias não são mera filosofia de botequim ou acampamento na beira da mata (com direito a repelente). São convites a uma autoanálise. Isso porque, se levarmos a ferro e fogo a dinâmica do bem versus mal, concluiremos que, se há um vilão na face da Terra, é o homem, que destrói e polui o meio ambiente e, sempre se dando conta tarde demais das consequências, percebe que as pragas colhidas foram plantadas por ele mesmo.
É evidente que não somos ruins — embora alguns filósofos discordem. O simples fato de existir, consumir e produzir lixo provoca mudanças no entorno. Mas nossa civilização, que nos presenteou com trunfos ultratecnológicos, é a mesma que continua devastando ecossistemas e alimentando as mudanças climáticas.
E, com um planeta mais quente, em que florestas são dizimadas e centros urbanos crescem sem planejamento, quem ganha asas para voar, picar e transmitir doenças são eles, os mosquitos. Então de quem é a culpa nessa história? Fica a reflexão.
Parece real!
A equipe de arte de VEJA SAÚDE, hoje nas mãos de Letícia Raposo e Laura Luduvig, mantém uma parceria de longa data com a ilustradora Erika Onodera. Se o leitor se deslumbra com desenhos hiper-realistas de células, órgãos, micróbios e bichos em nossas páginas, pode desconfiar que tem o dedo dela.
Com duas décadas de colaboração, Erika assina desta vez os mosquitos que povoam a capa e a reportagem especial da edição – eis um exemplar na ilustração que encabeça este texto. Dá quase para ouvi-los zumbindo…