“Tudo o que a gente aprender sobre nossa genética nos fará entender melhor o funcionamento do nosso corpo. E quanto mais conhecermos, mais estaremos equipados para nos defender de novas epidemias.” A afirmação de Lygia da Veiga Pereira, professora titular do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da Universidade de São Paulo (USP), dá uma dimensão do que se pode esperar do projeto DNA do Brasil, lançado no fim de 2019 e coordenado por ela, com o objetivo de mapear o genoma da população brasileira.
“Uma das grandes tendências em genética é o que chamamos de avaliação de risco poligênico, análise da influência dos genes no desenvolvimento de doenças mais prevalentes na população. Os estudos do DNA do Brasil são fundamentais para esse fim”, complementa Gustavo Campana, diretor médico da Dasa, empresa parceira da USP na iniciativa.
O que é esse projeto
A ideia é caracterizar geneticamente a população brasileira, com base no sequenciamento do genoma completo de indivíduos de todas as partes do país. “Isso é importante porque, hoje, 80% do que se conhece do genoma humano é baseado em amostras predominantemente europeias”, explica Lygia. Como somos um povo formado pela mistura de europeus, índios e africanos, esse trabalho incluirá a população do Brasil no mapa das pesquisas genômicas em nível global. “Estamos descobrindo novidades, principalmente, nas frações de genomas de origem latino-americana e africana”, conta a pesquisadora. Para ter uma ideia de nossa diversidade étnica, os primeiros resultados do DNA do Brasil, apresentados em setembro de 2020, mostram uma quantidade de variantes genéticas equivalente à soma de 54 populações espalhadas pelo mundo.
Qual a importância dele para o Brasil
A análise dos dados levantados pelo projeto vai possibilitar descobrir variações específicas dos brasileiros que podem estar por trás do aparecimento de doenças. Para realizar exames genéticos que avaliam a predisposição ao desenvolvimento de condições como diabetes, distúrbios cardiovasculares ou tumores, é importante conhecer as particularidades da população. Gustavo Campana exemplifica: “Em 2019, nos sequenciamentos feitos na Dasa relacionados aos genes BRCA 1 e 2, ligados ao câncer de mama hereditário, foram encontradas seis mutações novas que não são comuns a outras populações. Esse tipo de achado aumenta a qualidade dos testes genéticos de diagnósticos”.
Ao reunir as informações sobre as variações encontradas nos genomas dos brasileiros e correlacioná-las a determinadas doenças, o DNA do Brasil abre caminho para uma medicina de precisão, tanto na prevenção quanto no manejo de diferentes problemas de saúde.
Etapas do processo de montagem de dados
O DNA do Brasil é viabilizado em duas frentes: a parte laboratorial, feita num sequenciador de nova geração, e a de interpretação dos dados encontrados. “A Dasa doou 3 mil sequenciamentos de genoma, completos para esse projeto”, informa Campana. “Na USP temos a infraestrutura para a análise genética”, diz Lygia. A agilidade obtida pela parceria deu os primeiros resultados em apenas oito meses: mais de 1.200 genomas sequenciados. “A partir de agora, vem o conhecimento”, celebra Lygia.
A pesquisadora conta que a ideia inicial era dar começo ao sequenciamento a partir dos dados coletados pelo Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto, conhecido como Elsa Brasil. Essa grande investigação epidemiológica vem acompanhando, desde 2008, cerca de 15 mil pessoas, reunindo diferentes informações, entre elas amostras de sangue de onde será extraído o DNA para o sequenciamento. Com a pandemia, a submissão dos termos de consentimento dos participantes do Elsa foi postergada. “Por isso, usamos de saída outros estudos, um deles feito com pacientes atendidos no Instituto do Coração (InCor/USP) e outro com populações ribeirinhas de Rondônia, este conduzido pela Fiocruz”, explica Lygia.
Além dos sequenciamentos já prontos e aqueles em vias de finalização pela Dasa, outros 2 mil estão na fila. “Para esses, contamos com a verba de R$ 8 milhões que recebemos do Ministério da Saúde para dar continuidade ao trabalho”, revela Lygia. “Com isso, chegaremos a 5 mil genomas sequenciados. E a ideia é ampliar cada vez mais, muito além dos 15 mil do Elsa”, estima.
Importância da genética na elaboração de vacinas
Para o desenvolvimento de vacinas, explicam os especialistas, o que conta mesmo é obter a sequência completa do genoma do vírus causador da doença. Não à toa, em fevereiro de 2020, a comunidade científica comemorou o feito de pesquisadores brasileiros ao desvendar em 48 horas o código genético do SARS-CoV-2 – logo após a confirmação do primeiro caso de Covid-19 no Brasil.
No contexto de crises sanitárias, o sequenciamento do genoma dos brasileiros pode ter impacto na avaliação da resposta à infecção nos mais variados perfis – idosos, obesos, pessoas com ou sem doenças crônicas. “Estamos fazendo alguns estudos com genomas de pacientes com diferentes apresentações clínicas da Covid-19. Mas ainda não temos dados finalizados”, conta Campana.
Resultados esperados
“De imediato, o DNA do Brasil disponibiliza todas as variantes genéticas encontradas e com que frequência elas aparecem entre nós”, informa Lygia. “Isso vai ajudar na interpretação de testes Coronavírus genéticos para doenças, agora com referências nossas, não apenas aquelas encontradas em bancos europeus, por exemplo”, completa.
A partir desse projeto, o Ministério da Saúde lançou neste ano o Programa Nacional de Genômica e Saúde de Precisão (Genomas Brasil), que vai envolver genômica populacional (no braço DNA do Brasil), uma parte dedicada a investigar a incidência de doenças raras no país e uma frente com vistas ao desenvolvimento de terapias avançadas.
Com as informações dos primeiros sequenciamentos concluídos pelo DNA do Brasil, já é possível também começar a traçar um panorama da evolução e composição do povo brasileiro. “Estamos achando pedaços de genomas de populações indígenas ou latino-americanas extintas, mas cujos fragmentos existem em nós, assim como o componente africano”, descreve Lygia. Em outras palavras, o projeto DNA do Brasil possibilita conhecer a origem dos indivíduos. “Aprender sobre saúde e, ao mesmo tempo sobre a nossa história é uma oportunidade única”, finaliza Lygia.
O DNA na linha de frente
O conhecimento genético tem se mostrado essencial para entender a complexidade da Covid-19 e seus efeitos em diferentes perfis da população brasileira. Os resultados desses estudos terão cada vez mais impacto na realidade clínica, seja na detecção, seja no controle da doença. Alguns desses trabalhos estarão entre os avaliados pelos jurados do Prêmio Abril e Dasa de Inovação Médica, que em sua terceira edição será dedicado a iniciativas voltadas ao combate à pandemia do Sars-Cov-2.
Além da categoria Genética, a premiação contempla outras quatro – Prevenção, Medicina Diagnóstica, Tratamento e Medicina Social. Diferentemente dos anos anteriores, o foco em Covid-19 e a urgência do momento mudaram um pouco a dinâmica da premiação. Agora haverá um único júri técnico e científico, com grandes nomes da ciência brasileira, entre eles Natalia Pasternak, doutora em microbiologia pela Universidade de São Paulo e diretora-presidente do Instituto Questão de Ciência; o neurologista Jefferson Gomes Fernandes, vice-presidente da Associação Brasileira de Telemedicina e Telessaúde; a infectologista e epidemiologista Cristiana Toscano, professora da Universidade Federal de Goiás (UFG); e a pneumologista Margareth Dalcomo, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Conheça os demais nomes do júri no site da premiação. Os ganhadores serão anunciados em um evento virtual no começo de dezembro.