Crise climática já afeta infância: “Custo social que não dá nem para calcular”
Pesquisadora de Harvard comenta destaques de novo relatório que mostra como as mudanças do clima prejudicam o futuro das crianças brasileiras

Uma criança brasileira nascida em 2020 viverá quase sete vezes mais ondas de calor do que as nascidas nos anos 1960. Ela também experimentará quase três vezes mais enchentes e o dobro de incêndios florestais.
Esses são apenas alguns dos dados trazidos por um novo relatório do Núcleo Ciência Pela Infância. O documento pede que a primeira infância seja colocada no centro das discussões sobre a crise climática.
“O que acontece nesse período repercute pela vida toda, incluindo a exposiçao a fatores de risco que levam a doenças na velhice e são hoje as principais causas de morte “, comenta a cientista Marcia Castro, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, uma das autoras do documento.
As crianças pequenas e os idosos são o público mais sensível aos impactos do aquecimento global e seus desdobramentos, em especial os eventos climáticos extremos — secas, enchentes, incêndios florestais e deslizamentos, entre outros.
Tais eventos mais do que triplicaram nas últimas décadas no Brasil. Só em 2024, aponta o relatório, mais de 1 milhão de crianças e adolescentes brasileiros perderam aulas por conta deles. Além da educação, a própria saúde corre perigo. Os fenômenos aumentam o risco de perda gestacional, parto prematuro, doenças infecciosas e problemas de saúde mental.
Castro, que dirige o Departamento de Saúde Global e População de Harvard, é um dos principais nomes a pesquisar a interface entre saúde e meio ambiente no mundo.
A seguir, ela conversa com VEJA SAÚDE sobre o documento, as mudanças climáticas e a importância estratégica da primeira infância para a sociedade.
VEJA SAÚDE: De que maneira as crianças já são afetadas pelas mudanças climáticas?
Marcia Castro: Abordamos vários aspectos bem específicos sobre como excesso de calor, poluição e outros eventos afetam de forma desproporcional a primeira infância.
Uma coisa que a gente faz nesse documento é trazer, através de análises que já foram feitas, uma comparação. Por exemplo, se você pega crianças que nasceram em 1960 e crianças que nasceram em 2020, esse momento em que a crise climática já está bem estabelecida, elas vão estar expostas a quase 7 vezes mais ondas de calor do que as crianças que nasceram em 1960.
A onda de calor é um dos efeitos que já está sendo sentido. Os dados metereológicos do Brasil já mostram um aumento constante do número de dias com calor extremo. E isso afeta tanto as crianças como os idosos.
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Como elas são afetadas pelo calor?
As crianças, a criança não tem um mecanismo de transpirar muito bem desenvolvido, que é uma forma do corpo resfriar sua temperatura. Então elas ficam mais vulneráveis aos efeitos negativos do calor no organismo, como desidratação e e insuficiência renal, e isso pode até matar ou induzir um coma.
Fora que ele podem também afetar toda a parte cognitiva, prejudicando o aprendizado. As escolas não estão preparadas, não têm refrigeração ou árvores no quintal, então acabam virando ilhas de calor.
O calor extremo ainda gera respostas inflamatórias, o que estaria ligado ao maior risco de doenças cardiovasculares, diabetes, pressão alta e até demência no futuro.
Nas grávidas, o calor extremo pode levar ao parto prematuro, nascimento de bebês abaixo do peso ou mesmo perda fetal. Também pode haver transformações genéticas nesse feto que é exposto repetidas a altas temperaturas. Aí entramos no campo da epigenética [o impacto do ambiente na atividade dos genes].
Pode falar mais sobre o efeito no ciclo de vida?
Na vida adulta e na velhice, essas doenças estão exatamente associadas às principais causas de morte, e tudo isso pode ser um reflexo de coisas que aconteceram na primeira infância.
E é preciso que esse efeito de ciclo de vida seja entendido. Porque eu acho que isso é o que falta para a gente entender que muito do que está acontecendo na velhice poderia ter sido evitado se a gente tivesse dado mais atenção à primeira infância.
Quando você junta todos esses efeitos negativos à saúde no longo prazo (e só falamos do calor extremo até agora), você tem um impacto direto no capital humano, que que é o que move o desenvolvimento de um país, porque essa criança vai ter uma performance pior na escola e, depois, uma inserção pior no mercado de trabalho.
Você vê a implicação disso? Se a gente não focar as medidas de adaptação nas crianças, a gente está literalmente jogando fora parte do potencial de desenvolvimento da nação.
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Além do calor extremo, que outros eventos climáticos extremos podem ameaçar esse público?

A poluição do ar, que está muito ligada ao aquecimento global, é um problema no Brasil especialmente por conta dos incêndios florestais, que respondem por grande parte das emissões de dióxido de carbono (CO2) do país na atmosfera.
Para ter ideia, para que o Acordo de Paris [pacto que visa conter o aquecimento global em 1,5C°C] fosse cumprido, o Brasil precisaria contribuir com uma redução de 85% na liberação de CO2. Mas, se não existissem os incêndios, a meta seria apenas 25%.
E os efeitos negativos na saúde das pessoas não ficam só na Amazônia: se estendem para o Brasil inteiro, cruzam fronteiras. As crianças respiram mais rápido, então absorvem um volume muito maior de ar e poluentes. Isso pode trazer problemas respiratórios, alterações metabólicas, aumento do risco de câncer e contras consequências sérias.
Há estudos com cidades amazônicas mostrando que as populações expostas a poluição tem uma taxa de mortalidade 6 vezes maior. Também é importante falar sobre como o Brasil está crescendo.
Por quê?
Você tem um crescimento urbano, principalmente na região Norte, em que a gente está substituindo a floresta por áreas urbanas sem uma árvore, com presença de favelização. Então a gente está criando ilhas de calor que tornarão a vida insuportável para as populações locais, com impactos dramáticos nas crianças e nos idosos.
Precisamos repensar o planejamento urbano para criar cidade resilientes, e não que piorem ainda mais a crise climática. É um problema muito sério, e não vemos medidas concretas para mitigar isso ou melhorar a condição de áreas que já existem. Isso terá um custo social tão grande que não dá nem para calcular.
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O que seriam medidas de mitigação focadas na infância?
Principalmente melhorar a condição dos espaços onde as crianças estão inseridas. Não só a criança, aliás, mas a mãe e as gestantes. Ter mais árvores na cidade, por exemplo, tanto atua para reduzir o calor quanto para reduzir o risco de enchentes e deslizamentos.
Outra consequência da crise climática é a insegurança alimentar, então precisamos garantir que as crianças tenham acesso a alimentos saudáveis. O que vemos na realidade é, na Amazônia, os pequenos tomando suco de caixinha enquanto a fruta está ali do lado, no pé. Também é preciso garantir que elas continuem tendo acesso à água em períodos de seca.
Temos um programa muito forte de agentes comunitários da saúde, que podem passar para as pessoas a mensagem da crise e suas repercussões na saúde, porque o que estamos conversando aqui não é óbvio para todo mundo. Isso é importante ainda para promover o engajamento da comunidade, e talvez a gente aprenda coisas boas que as comunidades fazem e a gente ainda nem sabe.
É natural que, ao falarmos de coisas assim, a resposta seja muito pessimista ou desesperançosa, ainda mais ao envolver crianças. Como você lida com essa questão e com tantas más notícias?
Costumo dizer para os meus alunos que quem quer trabalhar em saúde pública tem que ter uma certa tolerância para frustração. Porque a gente lida direto com a política pública. E tem que ser otimista também, mas um otimista conscente, não um sonhador.
Nem sempre a gente ganha nas batalhas, mas a gente não desiste do motivo pelo qual a gente está lutando. Se a crise climática é um fato, é se a gente não pode controlar o que outros países estão fazendo, a grande pergunta é: o que podemos fazer para tornar o ambiente onde vivemos mais resiliente contra ela?
Há muitas possibilidades, mas os políticos precisam ter uma visão mais longa, não pensar apenas nos quatro ou oito anos de mandato. Focar em políticas de estado de redução da desigualdade, por exemplo, é essencial, porque, quando essas essas crises acontecem, a gente tem uma população que tem condições de ser resiliente (embora não esteja 100% protegida) e outra que, desproporcionalmente, seguirá sendo mais afetada.
A gente vai resolver o problema da crise climática? Sozinho, um país não fará isso. Mas a gente realmente tem um espaço enorme de garantir que a população sofra menos com esses eventos extremos.