No consultório ou em seus livros, o médico gaúcho Moacyr Scliar (1937-2011) tinha o hábito de prescrever a leitura a todos os seus pacientes e leitores. O autor de A Paixão Transformadora – Um Ensaio Sobre as Relações Entre Medicina e Literatura, entre tantos outros, chegou a escrever uma crônica bem-humorada sobre os efeitos terapêuticos de um bom livro. Em Ler Faz Bem à Saúde, ele diz que, “entre ir à farmácia e comprar alguma substância duvidosa para fortificar o cérebro, ou escolher um bom livro, recomendo a última opção”.
E explica o motivo: “é mais eficiente, mais barata, dá mais prazer e, a menos que a pilha de livro na mesa de cabeceira caia em cima do leitor, não tem efeitos colaterais”. Em sua estante de livros (ou seria armário de remédios?), Scliar guardava alguns títulos infalíveis. Se o paciente sofria de câncer, recomendava A Morte de Ivan Ilitch (1886) [clique para comprar]*, do russo Liev Tolstói (1828-1910). Se o diagnóstico era tuberculose, indicava A Montanha Mágica (1924), do alemão Thomas Mann (1875-1955). Mas, se o quadro era de saúde mental, nada melhor que O Alienista (1882), do brasileiro Machado de Assis (1839-1908).
A tese de Scliar – de que ler é um santo remédio para os males da alma – é compartilhada por psicólogos e biblioteconomistas. Cristiana Seixas é uma delas. Psicóloga, escreveu Vivências em Biblioterapia – Práticas do Cuidado Através da Literatura e, em 2016, coordenou o I Encontro Nacional de Biblioterapia – a segunda edição do evento está prevista para outubro, na Universidade Federal Fluminense. Adepta da biblioterapia desde 2010, Cristiana trabalha de duas formas: em sessões individuais ou em rodas de leitura, batizadas de “círculos de biblioterapia”. Em seu consultório, conta, há uma estante com títulos selecionados que ela chama de “farmacinha”.
Nas sessões iniciais, Cristiana costuma prescrever o poema Canção Excêntrica, de Cecília Meireles (1901-1964). Para quadros mais complexos, recomenda O Livro do Desassossego, do escritor português Fernando Pessoa (1888-1935), A Queda, do argelino Albert Camus (1913-1960) ou Notas do Subsolo, do russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881).
“O foco da biblioterapia é sempre o paciente. O gênero, o livro e o autor, nesta perspectiva, estão a serviço do cuidado com o paciente e sua história. Não há nada pior do que a aplicação de soluções prontas, que impõem fórmula única diante da complexidade, sem espaço para as narrativas do outro”, argumenta. Certa vez, um determinado livro ajudou muito no processo de luto de uma paciente. Em outra ocasião, porém, não surtiu o menor efeito. “Cada um é um grande mistério”.
Um dos precursores da biblioterapia, quando o método ainda nem sonhava levar esse nome, foi o médico grego Sorano de Éfeso (98-138 d.C.). Por causa do efeito catártico do teatro, costumava mandar seus pacientes assistir às peças de Sófocles, Ésquilo e Eurípides.
No Reino Unido, a biblioterapia já é adotada pelo seu Serviço Nacional de Saúde desde junho de 2013. Intitulado de Books on Prescription (Prescrição de Livros, em livre tradução), o programa prevê a substituição de antidepressivos por livros em pacientes com quadro leve ou moderado. “Os resultados surpreenderam tanto que foram estendidos a outras áreas de atenção psicossocial, como asilos, orfanatos e presídios”, explica Cristiana.
Por aqui, a importância da biblioterapia no tratamento da depressão foi tema do trabalho de conclusão do curso de biblioteconomia de Isabela Lustosa. Formada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), ela explica que, na biblioterapia, a leitura é usada como ponte para ajudar os pacientes a enfrentar seus medos, aliviar suas preocupações e a solucionar seus conflitos.
“O próprio ato de ler já é, em si, uma atividade relaxante que contribui para a redução do estresse. Ao rir ou chorar, o paciente assimila as emoções transmitidas pela leitura e libera as que estão reprimidas. Funciona como uma válvula de escape para os problemas do dia a dia”, explica.
No Brasil, uma das maiores autoridades no assunto é Clarice Fortkamp Caldin. Doutora em literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina, ela é autora de Biblioterapia – Um Cuidado com o Ser. Clarice explica que a terapia através dos livros se dá de duas maneiras: a leitura solitária e a leitura solidária.
A solitária acontece quando lemos um livro por puro prazer, porque estamos tristes ou nos sentimos sozinhos. “Viver o ficcional é terapêutico porque conseguimos abandonar temporariamente o mundo problemático em que vivemos e adentramos um universo ficcional, onde tudo é possível. A biblioterapia liberta, alegra e consola”, analisa.
Já a solidária, completa, está quase sempre associada a uma instituição: creches, escolas, hospitais, condomínios e casas de repouso. O biblioterapeuta seleciona o material de acordo com o perfil do público-alvo e, em seguida, organiza o local onde será realizada a atividade. Quanto mais convidativo e agradável, melhor. Terminada a leitura, desenvolve atividades lúdicas relacionadas à história ou estimula o grupo a trocar impressões sobre a obra.
“O sentido de pertencimento a um grupo é benéfico e o texto literário se presta a ser o intermediário”, diz Clarice. Solitária ou solidária, a biblioterapia já demonstra efeitos como melhorar a autoestima, turbinar a memória, enfrentar a depressão… “É o único remédio sem efeitos colaterais indesejáveis”, garante Cecília, fazendo coro às palavras de Moacyr Scliar.
Um livro para cada situação
Na obra Farmácia Literária, as escritoras Ella Berthoud e Susan Elderkin não só discorrem sobre o poder terapêutico dos livros como trazem sugestões de leitura para momentos de estresse, tristeza ou angústia. Confira abaixo dez indicações, de acordo com o momento ou sentimento da vez.
- Alcoolismo – O Iluminado, de Stephen King.
- Ansiedade – Retrato de Uma Senhora, de Henry James.
- Baixa autoestima – Rebecca, a Mulher Inesquecível, de Daphne Du Maurier.
- Bullying – Olho de Gato, de Margaret Atwood.
- Culpa – Crime e Castigo, de Fiodor Dostoiévski.
- Depressão – A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera.
- Esgotamento – Zorba, o Grego, de Nikos Kazantzakis.
- Insônia – Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa.
- Pessimismo – Robinson Crusoé, de Daniel Defoe.
- Tristeza – Dois Irmãos, de Milton Hatoum.
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