O cirurgião geral Ewerton Nunes Morais, de 60 anos, estava de plantão em 27 de janeiro de 2013. Naquele dia, o médico convidou o filho, Luís Arthur Resener de Morais, de 24 anos, para acompanhar seu plantão no Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM). O rapaz cursava o último ano de Medicina na Universidade do Sul de Catarina (Unisul), em Tubarão (SC).
De madrugada, começaram a chegar as primeiras vítimas, com quadro de insuficiência respiratória grave. Logo, o médico descobriu que a Boate Kiss, a mais badalada de Santa Maria (RS), tinha pegado fogo. Ao todo, a unidade atendeu mais de cem jovens, entre 18 e 30 anos. Diante da gravidade do caso, Ewerton pediu que o hospital chamasse os médicos e enfermeiras que estavam em casa. “Estamos em estado de guerra”, alegou.
Lá pelas tantas, seu celular tocou. Era Marina, sua filha, também médica. “Diga, filha, estou ocupado”, atendeu, impaciente. “Pai, espera, pelo amor de Deus: o Arthur estava na Kiss”, avisou Marina. Apesar do baque, o médico se lembrou de uma máxima do cirurgião Ribeiro Netto (1929-1995): “Na Emergência, se o médico pensar muito, o paciente morre”. E continuou atendendo os feridos que não paravam de chegar ao hospital, um dos sete da cidade.
Dali a pouco, quem deu entrada na unidade foi Arthur, levado pela mãe, a ginecologista Elaine Verena Resener. Em estado grave, o rapaz foi entubado e levado às pressas para a UTI.
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“Um dos méritos do livro é dar voz aos profissionais de saúde que estavam de plantão naquela noite. Muitos nunca tiveram a oportunidade de falar sobre o que viveram na madrugada de 27 de janeiro de 2013”, revela a jornalista Daniela Arbex, autora de Todo Dia A Mesma Noite — A História Não Contada da Boate Kiss, da Editora Intrínseca (clique aqui para comprar).
Um desses profissionais de saúde foi o médico Ewerton Morais, hoje com 70 anos. Outra foi a enfermeira aposentada Liliane Duarte, de 58. Na época, ela era capitã do Hospital da Brigada Militar de Santa Maria. Liliane foi uma das primeiras socorristas a entrar na boate depois do incêndio que matou 242 pessoas. Até hoje, não se esquece da pilha de corpos no hall de entrada e do barulho incessante das chamadas não atendidas dos celulares.
Outra cena que também não sai de sua cabeça, dez anos depois, é a do Centro Desportivo Municipal, o Farrezão, para onde foram levados os corpos das vítimas. Liliane ficou encarregada da difícil tarefa de ajudar pais e mães a reconhecerem seus mortos no ginásio esportivo. Muitos deles, chocados com a tragédia, se recusaram a acreditar que seus filhos e filhas estivessem ali, entre as vítimas fatais.
“Dez anos depois, o que a gente aprendeu com a Kiss? Quase nada! Quantas boates não existem por aí, superlotadas?”, indaga Liliane. “Os jovens precisam ter mais consciência. Tá lotada? Não entra! Não podemos colocar nossa vida em risco. Vida, só temos uma. Se perdermos essa, não teremos outra”.
Os dez anos da tragédia da Boate Kiss inspiraram uma minissérie ficcional da Netflix, Todo Dia A Mesma Noite, escrita por Gustavo Lipsztein e dirigida por Júlia Rezende, e uma série documental do Globoplay, Boate Kiss — A Tragédia de Santa Maria, dirigida e apresentada por Marcelo Canellas.
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Entre os dias 23 e 29 de janeiro, a minissérie Todo Dia A Mesma Noite, rebatizada de The Endless Night, alcançou o sexto lugar entre as produções de língua não-inglesa, com mais de 28,3 milhões de horas assistidas.
“Quando recebi o convite, entendi que era necessário contar essa história para perpetuar a luta das famílias e a busca por justiça. Queria denunciar o descaso e a omissão do Estado”, explica a diretora, que levou cerca de três semanas só para filmar a sequência do incêndio no interior de uma boate cenográfica. “Além dos desafios técnicos, tínhamos centenas de figurantes. A dedicação deles foi comovente de se ver”.
A veterinária Juciane Bonella, 31, acredita que não terá forças para assistir à minissérie. “Seria insuportável”, admite. Ela é uma das 636 pessoas que sobreviveram à tragédia. Ficou em coma por 68 dias e foi submetida a mais de 20 cirurgias. “Minha fé me reergueu inúmeras vezes e continua me fazendo seguir em frente”, explica Juciane que, ainda hoje, faz uso de antidepressivos. “Vivi a maior parte desses dez anos falando do incêndio como se eu não tivesse vivido aquilo. Segundo minha terapeuta, é um mecanismo de defesa, um isolamento afetivo”.
Já o técnico em prótese dentária, Delvani Rosso, 30, acha da maior importância que os jovens assistam tanto à minissérie quanto ao documentário. “Os mais novos tendem a achar que tragédias como a da Boate Kiss não acontecem com eles, só com os outros. Estão enganados. Se eu pudesse voltar no tempo, tentaria alertar as pessoas. Sei que não adiantaria, diriam que estou louco, mas eu tentaria alertá-las para o perigo da superlotação”.
Delvani foi resgatado do fogo pelo próprio irmão, Jovani. Na confusão, um não sabia que estava salvando o outro. Só veio a descobrir quatro dias depois, já no hospital. “A fisioterapia foi a parte mais dolorosa da minha recuperação. Minhas costas estavam em carne viva. ‘Ou você aguenta a dor ou vai ficar sequelas’, me disseram. A dor era tanta que, na hora da sessão de fisioterapia, eu tinha que morder uma toalha. Foram dois anos de muito sofrimento”.
O inquérito policial durou 55 dias e ouviu 800 testemunhas. Entre outras irregularidades, apontou excesso de lotação, falha nos extintores e falta de treinamento dos funcionários da casa. Por fim, responsabilizou 28 pessoas.
Dessas 28 pessoas, só quatro foram denunciadas pelo Ministério Público: os sócios da boate, Elissandro Spohr, de 39 anos, e Mauro Hoffmann, de 57; o músico Marcelo de Jesus, 42, que acendeu o artefato pirotécnico que pôs fogo ao revestimento acústico do palco, feito de material altamente inflamável, e o produtor Luciano Bonilha, 45, todos por homicídio doloso.
Os quatro réus foram levados a júri popular em dezembro de 2021. E, depois de 10 dias de julgamento, condenados a penas que variavam de 18 a 22 anos de prisão. No entanto, em agosto de 2022, os advogados de defesa recorreram e conseguiram anular a sentença. Não há data para novo julgamento.
“Infelizmente, a tragédia de Santa Maria ainda não teve um desfecho”, lamenta o jornalista Marcelo Canellas. “E essas 242 famílias merecem uma resposta. Essa demora é constrangedora até para o próprio Judiciário”.
“Qual é a importância de se construir uma memória coletiva do incêndio da Boate Kiss? A resposta é simples: esquecer é negar a história”, sublinha a jornalista Daniela Arbex. “Precisamos construir uma memória coletiva do que aconteceu para repensar nosso presente e construir um futuro mais seguro para todo mundo”.
Quanto a Luís Arthur, ele sobreviveu. Formado em Ortopedia e Traumatologia, trabalha em Santa Maria.