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A enfermeira especialista em educação Jussara Otaviano, embaixadora do Prêmio de Enfermagem Rainha Silvia da Suécia, discute a importância de valorizar a diversidade e o tamanho dos impactos da desigualdade no acesso à saúde
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Quando homens negros produzem afeto diante do sagrado feminino

Nossa colunista convida um profissional da saúde a refletir sobre a necessidade de cuidarmos melhor de si - inclusive para poder cuidar dos outros

Por Jussara Otaviano e Lucas Otaviano*
Atualizado em 21 mar 2024, 16h15 - Publicado em 20 mar 2024, 17h17

Sim, estamos em tempos de poucas comemorações em torno do mês de março, mês que marca a importância dos direitos civis femininos, tão desrespeitados pelos últimos eventos sociais, como a escalada da violência contra mulher, a manutenção de menores salários e os constantes estados de guerra que nosso planeta vem enfrentando. Parece que também estamos em tempos escassos para a palavra “reciprocidade”.

Mas quero resgatar aqui Lucas Ribeiro Otaviano, homem negro, pai de uma pequenina menina afrodescendente, formado pelo sistema de cotas na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), especializado em cardiopediatria. Lucas cuida do coração de crianças. “Coração” vem do latim “cordis”, que representa o órgão que bombeia o sangue para o corpo. Mas, se transpormos para o adinkra africano, o termo significa “amor”, “paciência”, “tolerância”.

Não é à toa que, ao pensarmos no texto para esta coluna, ele tenha escolhido refletir sobre cuidar de quem cuida. O que quase sempre nos remete às mulheres. Com a palavra, Lucas.

Quando construí este texto, baseei-me no conceito da essencialidade e no livro Essencialismo: a disciplinada busca por menos, de Greg McKeown. Em tempos de uma cultura positivista, com a pró-atividade como um dos grandes pilares, constantes exposições a diversos universos mostrando que tudo é possível (ser milionário, ter físico invejável, falar cinco línguas, ser altamente produtivo no serviço, ativista social e da internet, cuidar bem da família… tudo ao mesmo tempo) e o continuum entre tempo e espaço possibilitado pela tecnologia, somos frequentemente estimulados a buscar sempre mais.

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Entre família, amigos, amores, estudos, trabalhos, dinheiro, sucesso e saúde, temos de dar conta de tudo. Mas precisamos mesmo de tanto?

Contrastando com essa vida de plenitude e exploração de todos os potenciais, a face oposta da moeda do “tudo é possível” é no mínimo perversa. Somos constantemente avaliados em todos os campos pelos resultados que apresentamos frente às nossas responsabilidades, o que faz sentido.

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A ironia é que, ao se sobressair, em vez dos “parabéns”, quem se destaca com frequência acaba recebendo mais carga de serviço, afinal “você é tão bom”. E, após assumir qualquer outro compromisso, se não obtiver sucesso, você atuou “de má vontade”. Em caso de triunfo, em vez de “obrigado”, há de receber tarefas extras, afinal, “só você para resolver a situação”.

Em última análise, a sobrecarga se transforma em hábito e as responsabilidades primárias ficam afetadas por falta de tempo. Isso nos leva a questionar: como enxergamos as pessoas, pelos seus feitos? A consequência desse modo operante é a avaliação negativa das pessoas quando não dão conta do básico por estarem sobrecarregadas.

E essa sobrecarga oprime especialmente mulheres pretas e pardas. Segundo dados do IBGE, 50,9 % dos lares brasileiros são chefiados por mulheres.

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Pela primeira vez, desde o primeiro Censo, em 1991, a maior parte da população se declara parda. Seriam essas cidadãs as que mais se desdobram na tripla jornada de trabalho? Entre emprego e cuidados com a casa e a família? Tudo leva a crer que sim.

A figura da mulher também aparece no imaginário social quando se precisa de uma ajuda principalmente de última hora; em qualquer tarefa, é ela que tem o “jeitinho”, que vai dar uma dar uma “mãozinha”. São as mulheres que têm essa habilidade particular de resolver múltiplas coisas, não?

É a colega que consegue fazer um relatório extra, a sócia que paga contas, a amiga que ajuda na apresentação, a mãe que ajuda nas pendências escolares, acompanha nas consultas e cuida de todos os detalhes da vida dos filhos, a parceira que trata do lazer, a avó que cuida dos netos, a filha que fica responsável pelos pais enquanto os irmãos vão “viver a vida”.

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Outra ironia desta nova cultura é a necessidade imprescindível da excelente saúde mental. Já não há espaço para expressões de sofrimento, sinais de cansaço ou depressão. Mas que hora deve ocorrer o autocuidado? Entre 4h e 5h da manhã?

No desgaste enfrentado pelas trabalhadoras na violência silenciada e vivenciada no transporte publico quando estão a caminho de cuidar de famílias que não são as suas? Entre os intervalos das reuniões de gestoras e executivas? Ou entre fazer o jantar e ajudar no dever de casa dos filhos?

A tão falada saúde mental necessita de espaço e tempo para ser desenvolvida. Para tal, é fundamental que se imponham limites protegendo momentos de individualidade. Vez ou outra, é preciso dizer NÃO ao outro; e SIM para si!

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Provavelmente não vão gostar muito dos seus NÃOs, principalmente vindos do universo feminino, mas não é possível estar em todos os lugares a todo tempo e fazendo de tudo. Se você não decidir, com certeza outros decidirão por você.

Aqui cabem as perguntas: o que é prioridade para você? Dentro das suas possibilidades, onde você quer estar e o que quer fazer? Um olhar individual para si permite inclusive visualizar as pessoas que não estão alinhadas com o que desejamos à nossa vida – muitas vezes, é preciso repensar e se desligar desses vínculos.

Temos de valorizar (ainda mais) as mulheres cuidadoras, as que já aprenderam e as que estão aprendendo a cuidar de seu sagrado feminino, fazendo boas escolhas na vida. Minha mãe, meu grande exemplo e a quem eu dedico este texto, sempre nos cobrava para não fazer duas coisas ao mesmo tempo. Comer à mesa, por exemplo, era momento de aproveitar com a família sem outras distrações.

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Atrás da regra, vinha a ideia geral tão bem resumida na frase do poeta Fernando Pessoa: “Sê todo em cada coisa”.

Não importa o que você vai deixar de fazer. No que estiver fazendo, seja o máximo que puder. O caminho da felicidade mora por aí. Que nós, homens, aprendamos a cuidar desse lado sagrado feminino. E que as mulheres, únicas e poderosas, possam ter cada vez mais respeito e inteireza em suas atividades a cada ciclo da vida.

* Lucas Otaviano é cardiopediatra*

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