Esses dias assisti, chocada, ao trecho de um filme brasileiro que expunha adolescentes à pedofilia de forma explícita – e, o pior, como se fosse algo normal. Senti-me enojada. A cena de Como se tornar o pior aluno da escola (só pelo nome já vemos a problemática) traz dois adolescentes sendo estimulados a tocar nas genitálias de um homem, o “tio”. É a normalização do abuso sexual de menores travestida de humor.
Além disso, tenho visto cada vez mais desenhos extremamente violentos com classificação livre ou inadequada em plataformas como Netflix. Soube de um com indicação de 10 anos e que mostrava crianças decapitadas pelos próprios pais ou queimadas vivas.
Um pai de família certa vez me confidenciou que acabou descobrindo vídeos do YouTube disfarçados de desenhos infantis fofos, mas completamente maldosos, com instigação à violência e ao sexo. Tinha até o Mickey se masturbando e mostrando a genitália para os amiguinhos.
Como se a questão do conteúdo não bastasse, a situação preocupa por causa de outros aspectos. A tela não é, nem deveria ser, a babá do seu filho.
Enquanto ele está diante dela, deixa de fazer atividades ao ar livre, ler livros e passar tempo de qualidade com você. As telas não podem funcionar como uma muleta, e sim como uma ferramenta bem utilizada de aprendizagem.
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Mau uso da tecnologia traz muitos problemas
A todo instante, um vídeo apelativo instiga o cérebro (da criança e também do adulto). Um título chamativo, uma foto que pede um clique, enfim, um universo que te prende dentro dos seus próprios interesses.
Basta um piscar de olhos e já se passaram 30 minutos, uma hora, duas horas nas redes sociais. A conclusão é inevitável e já comprovada pela ciência: as telas viciam.
O mecanismo cerebral envolvido no uso de telas é o mesmo que atua na dependência de drogas e vícios.
As telas estimulam a liberação de dopamina, neurotransmissor que desencadeia os desejos. Por essa razão, tablets, celulares e televisão estão relacionados ao desenvolvimento de agressividade, compulsividade e ansiedade.
Além disso, dados preliminares de um estudo estadunidense conduzido pelo National Institute of Health (NIH) demonstram que existem diferenças constitucionais no cérebro da meninada exposta a tela em excesso, sendo a principal delas a alteração do córtex cerebral.
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Dessa forma, a criança teria menor capacidade de receber informações sensoriais, como visão, tato, olfato, paladar e audição.
Não é à toa que a Sociedade Brasileira de Pediatria e a Academia Americana de Pediatria contraindicam o contato com telas até os dois anos – salvo as videochamadas com a vovó.
O cérebro está em formação. Os primeiros anos de vida não podem (e não devem) ser desperdiçados. Atividades online retiram o pouco tempo que temos para desenvolver relações interpessoais e estreitar os laços com os filhos.
Por isso, precisamos acordar para uma realidade cada vez mais comum: meninos e meninas entregues à própria sorte, numa família onde os pais não impõem sua autoridade (sim, autoridade, pois cabe aos adultos mostrarem o que crianças e adolescentes podem ou não fazer, de olho no bem deles) e não passam ensinamentos e convicções de vida sólidos, com princípios e valores a serem seguidos.
Se temos o poder de modelar e moldar o cérebro da criança nos primeiros anos, não podemos desprezar essa oportunidade com tranqueiras, certo?
Isso tudo parece óbvio, mas a realidade é outra. A pesquisa TIC KIDS ONLINE, de 2018, entrevistou 2 964 famílias com crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos e revelou que 24% abusavam de telas, sendo que 25% sentiam dificuldade para controlar o tempo de uso.
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Aliás, se hoje vemos crianças com acesso a qualquer tipo de tecnologia, imagine os adolescentes. Estatísticas mostram que, nesses ambientes virtuais, eles já tiveram contato com cenas de pornografia, nudez e violência explícitas sem o conhecimento dos pais.
No mesmo estudo citado acima, 20% dos adolescentes assumiram ainda a possibilidade de acesso a conteúdos sensíveis sobre alimentação e sono; 16% sobre automutilação; e 14% sobre suicídio.
Em 2015, a pesquisa TIC KIDS ONLINE já havia divulgado dados alarmantes:
+ 30% dos adolescentes disseram que os pais sabem “mais ou menos” o que eles fazem na internet;
+ 18% contaram que os pais sabem “apenas um pouco”;
+ e 16% afirmaram que os pais não têm conhecimento de “nada” do que acontece online
Fatores como ausência de supervisão parental e acesso indiscriminado a conteúdo inapropriado culminam em aumento de agressividade, ansiedade, depressão, distúrbios alimentares, além de abuso de substâncias lícitas e ilícitas.
Questão de limites
É desesperador ver que o problema é bem maior do que as telas em si. Há uma frouxidão e uma permissividade entremeada na criação dos filhos. Nessa cultura que preza a recompensa imediata, criamos crianças mimadas e desprovidas de objetivos e metas.
Como Catherine L’Ecuyer diz em seu livro Educar na Realidade (clique aqui para comprar), “uma criança que não tolera a frustração é uma criança frágil, caprichosa, incapaz de adiar a gratificação. Essa criança dificilmente será feliz na vida, apesar de passar a vida em busca da felicidade, porque a vida pressupõe certas frustrações, dificuldades e sofrimentos.”
Pois bem: há verdades que precisam ser ditas. A educação vem do berço. É exatamente isso que está faltando. Significa que nada (nem ninguém) deveria tirar dos pais o que cabe a eles. A educação por princípios e valores deve ser instituída pelos adultos.
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Assim como não permitimos que eles peguem uma faca porque podem se cortar, não devemos deixá-los à mercê das telas sem supervisão e sem avaliar se o conteúdo realmente vai somar ao seu aprendizado.
Aí, então, você poderá me dizer: “Ah, mas é impossível viver na bolha! Como vou ficar sem internet ou qualquer tipo de tecnologia?” Não. Não é nada disso. A minha orientação é que você assuma a educação dos seus filhos. E isso inclui ficar de olho naquilo que eles assistem – e limitar as telas para os pequenos, que devem aprender e vivenciar coisas na vida real.
No mesmo livro, Catherine L’Ecuyer comenta: “A criança, através do bombardeamento de informações e do ritmo frenético da multitarefa tecnológica, perde a curiosidade e, portanto, o seu interesse em conhecer a realidade. ”
Acredite: o preço pago será muito alto se tratarmos de forma leviana algo que deveria ser o nosso mais importante papel: construir o futuro dos nossos filhos e da sociedade.
Não podemos apenas culpar a tecnologia, a Netflix, o YouTube e os programas de televisão inadequados. Afinal, eles sempre existirão. No fim, quem permite que eles entrem em sua casa é você.
Eu sei que, de toda forma, há um preço a pagar. Porque precisamos, por exemplo, lançar mão de ferramentas alternativas para manter as crianças ocupadas enquanto trabalhamos. E isso exige paciência. Mas, novamente, é uma questão de escolha. E podemos tomar boas decisões. Lembre-se disso.
Por fim, quero ensinar vocês a denunciarem qualquer conteúdo que considerem impróprio devido ao teor sexual, pois só assim poderemos combater crimes como a pedofilia. Essa é uma luta de todos nós.
Passo a passo:
1. Entre no site https://new.safernet.org.br/denuncie#
2. Selecione pornografia infantil
3. Coloque o site denunciado
4. No comentário, escreva o nome do filme, programa ou desenho e informe que ele contém um conteúdo que fere o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Você também pode e deve denunciar em outros órgãos de segurança e combate ao crime pelo e-mail: ouvidoria@mcom.gov.br
São pequenos passos, mas que podem gerar grande impacto no bem-estar de nossas crianças.
Nota da VEJA SAÚDE
Esse texto é um artigo de opinião. E, após a polêmica sobre o filme, o Globoplay e o Telecine divulgaram o seguinte comunicado:
“O Globoplay e o Telecine estão atentos às críticas de indivíduos e famílias que consideraram inadequados ou de mau gosto trechos do filme ‘Como se tornar o pior aluno da escola’ mas entendem que a decisão administrativa do ministério da Justiça de mandar suspender a sua disponibilização é censura. A decisão ofende o princípio da liberdade de expressão, é inconstitucional e, portanto, não pode ser cumprida. As plataformas respeitam todos os pontos de vista mas destacam que o consumo de conteúdo em um serviço de streaming é, sobretudo, uma decisão do assinante – e cabe a cada família decidir o que deve ou não assistir. O filme em questão foi classificado, em 2017, como apropriado para adultos e adolescentes a partir de 14 anos pelo mesmo ministério da Justiça que hoje manda suspender a veiculação da obra”.