Não é preciso ser um expert para perceber falhas estruturais nos sistemas de saúde. Uma evidência irrefutável dessa constatação é saber que os Estados Unidos investem cerca de 18% do PIB em saúde e, além de estarem longe da liderança global na qualidade assistencial, enfrentaram uma redução na longevidade da sua população na segunda metade da última década. Não faz sentido!
Diversos fatores influenciam essa situação e seus desfechos. Estou convicto de que o modelo mental vigente centrado na doença está na base de tal distorção, deixando à prevenção um espaço de desejo futuro. Só que a prevenção não pode descer do palco!
Resultante desse olhar equivocado, a evolução nas relações entre prestadores de serviços e pagadores gestou um sistema de reembolso que cria, por si só, um viés de incremento na demanda dos serviços, independente da pertinência no cuidado. É um modelo conceitual insustentável que destrói valor no tempo.
Antes de avançar, cabe registrar que, apesar de ser filho, irmão, genro, tio, sobrinho e amigo de médicos, eu sou engenheiro e entrei na área da saúde inspirado pela possibilidade de tornar acessível um sinal vital neurológico até então aprisionado dentro de nossas cabeças. Libertar um sinal vital salva vidas e reduz a dor e o sofrimento. E é um exemplo de como podemos construir uma medicina mais preditiva e menos refém do paradigma atual.
Me refiro a uma inovação médica global desenvolvida pela nossa healthtech, a brain4care, que provou que a caixa craniana pulsa em sincronia com o ciclo cardíaco, desenvolveu sensores externos e não invasivos que captam esse pulso continuamente e estabeleceu correlações entre esses pulsos e as alterações de volume e pressão intracranianas — um fenômeno tecnicamente conhecido como complacência intracraniana ou cerebral.
Para entender a relevância dessa tecnologia, devo destacar que os distúrbios neurológicos representam hoje a segunda principal causa de morte e a primeira de incapacitação mundo afora. E a grande maioria dessas condições está relacionada a alterações no volume e na pressão intracraniana.
Isso soa mais óbvio quando falamos de acidente vascular encefálico (AVE), hidrocefalia, tumores e traumas, mas o ponto é que outras doenças, nem sempre originárias do sistema nervoso, podem impactar a tal complacência intracraniana — aqui entram problemas no coração, no fígado e nos rins, por exemplo. E precisamos urgentemente reduzir o fardo global dos distúrbios neurológicos.
Agora que esclareci a motivação do meu engajamento profissional com a saúde, sempre ciente que o privilégio do outsider é não ser influenciado pela visão dos insiders, posso compartilhar que liderei uma equipe incrível na concepção dessa inovação em conexão direta com o que acreditamos ser a essência da medicina: ampliar o território da saúde. É mais do que apenas reduzir o território da doença!
Após avanços científicos documentados, e a aprovação regulatória na Anvisa e na FDA (nos EUA), lançamos essa tecnologia pioneira e acessível e encaramos agora o falso dilema da tecnologia aplicada à saúde: a percepção de que aumentar a predição e a prevenção, ampliando a pertinência do cuidando e melhorando o desfecho, poderia colocar em risco a cadeia de valor nos negócios do segmento. Eis um equívoco de interpretação que será fatal para muitos atores envolvidos nesse universo.
Na essência, vejo isso como a inércia de uma visão que já foi dominante, típica de quem está preso a uma realidade anterior e não consegue mais perceber os demais movimentos relativos. Essa lógica parcial induz à reflexão de que prever a evolução clínica do paciente afeta negativamente as receitas, ou que evitar uma intervenção cirúrgica reduz o retorno sobre o ativo. É uma visão distorcida, mas ainda ocorre por aí.
E fica ainda mais sem sentido não apenas porque retira o paciente do centro, mas porque é uma falácia. O observador, preso ao modelo mental que a doença amplia o negócio, só enxerga um lado da equação. Assim, não percebe que a tecnologia também prevê a necessidade de antecipar intervenções, realizar exames não pensados, ajustar protocolos ultrapassados, entre outras infindáveis possibilidades que, ao final, não apenas melhoram a vida das pessoas mas também promovem melhores resultados para os negócios.
Se não bastasse a armadilha do falso dilema, é ainda mais preocupante a não percepção de que, com a digitalização, tudo será mais facilmente identificável, rastreável, comparável e analisável. E isso muda totalmente o jogo: sai o foco em doença e sinistralidade, entra o olhar para a prevenção, o desfecho e as casuísticas. O movimento tectônico já aconteceu. Pena que poucos conhecem a origem dos tsunamis.
* Plinio Targa é CEO da brain4care