No ano passado, em uma enfermaria do hospital onde eu trabalho, estava conversando com a filha de um paciente sobre a doença de seu pai. Ela me contava os detalhes do que aquele senhor que estava imóvel à nossa frente havia passado. Segundo ela, era um homem ativo, que gostava de dançar, ouvir música e de almoçar e jantar com sua família.
Num desses jantares, ele sofreu um mal súbito e foi levado ao hospital. Sua doença desde o início já apontava um risco enorme de que aquela situação jamais seria revertida para o normal. A partir daquela noite, nunca mais essa família veria o pai alegre das festas e dos jantares.
Olhávamos para o paciente e imaginávamos toda a trajetória dele desde aquele infortúnio de três meses atrás. Ele fora levado para a unidade de emergência e, de lá, para o setor de terapia intensiva, onde recebeu tudo o que a medicina pode oferecer. Os melhores tratamentos, os melhores aparelhos…
Ainda assim, hoje aquele homem já não se comunica, não consegue expressar suas vontades e depende completamente de um aparelho para respirar, além de pessoas para aliviar suas necessidades de higiene mais básicas. Isso sem contar os medicamentos e a dieta por uma sonda implantada em seu estômago.
Após revisarmos essa história, a filha chorou bastante e disse que, se seu pai pudesse falar naquele momento, certamente teria escolhido não viver todo aquele sofrimento para, no fim das contas, tornar-se dependente de outras pessoas em uma situação irreversível. Ela então olhou para mim e perguntou se seria possível termos feito algo diferente.
Minha resposta foi que “sim”. Seria interessante que soubéssemos as preferências, os valores e as crenças daquele homem antes de tudo. Se elas estivessem registradas no prontuário dele em um sistema organizado, teriam nos ajudado a tomar as decisões mais adequadas e proporcionais à sua necessidade.
Por isso que hoje a discussão sobre o testamento vital e as diretivas antecipadas de vontade está em alta. Cada vez mais as pessoas estão se conscientizando de que, em algum momento de suas vidas, vão precisar do auxílio de outras para que suas vontades sejam respeitadas.
Uma papelada essencial
As diretivas antecipadas são um documento que registra as nossas preferências sobre como queremos ser tratados em uma situação na qual não possamos mais nos comunicar. Quando é redigido o mais precocemente possível, de preferência quando estamos saudáveis, e compartilhado com as pessoas queridas, esse texto pode ter muita validade no futuro.
As pessoas confundem as diretivas antecipadas de vontade com um documento voltado somente para aquilo que elas não querem receber de tratamento próximo da morte. Essa visão é simplista.
Outro mito é imaginá-lo como algo burocrático, difícil de fazer. Não é! Uma diretiva antecipada de vontade deve ser orientada por um profissional de saúde, mas pode ser escrita de maneira bem livre. Você poderia escrever a sua agora mesmo, que tal?
Eu estou escrevendo a minha e as preferências são tantas que caberiam num livro. Higiene, cuidados que gostaria de receber, quais pessoas eu gostaria de ter por perto num momento difícil, quantas pessoas eu gostaria que estivessem presentes em uma visita hospitalar.
Será que eu tenho preferência de ser cuidado em minha casa ou gostaria de ser levado para um hospital? Será que as crianças poderiam estar perto de mim neste momento? Será que eu deveria ouvir as músicas que eu gosto? Será que eu poderia receber as práticas da minha religião ou crença espiritual?
Se os médicos estivessem melhor informados, orientariam seus pacientes para que pudessem adicionar essas informações no prontuário ou ficha deles. Assim estaríamos sendo mais justos na medicina.
Infelizmente, apesar da discussão filosófica ser bonita e você acabar de ser convidado a escrever suas diretivas, a maioria do país está sem capacidade para entender e respeitar esse documento. Boa parte dos serviços do Brasil não disponibiliza uma equipe de cuidados paliativos, por exemplo.
Esses times multidisciplinares possuem um papel estratégico na administração de situações difíceis, como quando um indivíduo escreve em suas diretivas antecipadas de vontade que não deseja receber um tratamento na UTI, ou hemodiálise, ou cirurgias, ou aparelhos de ventilação… Ao dispensar essas terapias, ele necessita uma equipe especializada para conter o sofrimento inerente a essa decisão.
Os cuidados paliativos são a modalidade responsável por melhorar o conforto e a qualidade de vida da família e do paciente em situações nas quais a doença ameaça a vida. Você já se perguntou se o hospital que frequenta possui uma equipe assim?
Então mãos à obra: comece questionando o seu médico sobre como escrever as diretivas da melhor maneira, em seguida informe-se sobre os cuidados paliativos. O futuro da saúde será cuidar novamente das pessoas individualmente e com empatia!
*Dr. Douglas Henrique Crispim, geriatra e secretário Geral da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP)