No início da minha residência médica no A.C.Camargo Cancer Center, em São Paulo, deparei pela primeira vez com um quadro grave de interação medicamentosa, desencadeada por um “remédio natural”. Duas pacientes sangraram tanto no pós-operatório que precisaram de uma nova cirurgia para resolver o problema causado pela hemorragia.
O pré-operatório de ambas as mulheres tinha sido tranquilo. Todos os medicamentos utilizados anotados pelo médico anestesista, e todos os exames laboratoriais, inclusive os de coagulação, estavam checados e normais. As cirurgias transcorreram sem problemas.
Mas, quando estavam já no quarto do hospital, ambas apresentaram um sangramento pequeno, aparentemente inocente, porém contínuo, que levou as duas para a mesa cirúrgica de novo.
Me lembro claramente das duas, porque, após a operação de urgência, elas notificaram uma informação adicional, dada após muita conversa: faziam uso de um produto natural para melhorar a memória.
Pouco tempo depois, o tal “remedinho natural” foi descrito como causador de hemorragias em outras pessoas, e após estudos descobriu-se que na verdade ele “afinava o sangue”. A suposta melhora da memória advinha do fato de que o fitoterápico facilitava a circulação sanguínea no cérebro.
Mas, por alterar a coagulação, na bula do produto passou-se a incluir a informação de que seu uso precisava ser descontinuado antes de cirurgias.
Compartilho essa lembrança para trazer aqui um alerta importante: não é só porque algo é “natural” que não tem efeito colateral ou interação prejudicial com outros medicamentos.
Quando falamos em tratamentos contra o câncer, é frequente se usar o termo “polifarmácia”. O nome é bem o que acontece com grande parte dos pacientes, que precisam de mais de um medicamento para tratar a doença. Além disso, se soma ao remédio que cura uma série de outros fármacos que têm como objetivo reduzir sintomas desse percurso, como inchaço, náusea, diarreia, dor muscular, mal-estar etc.
E aí é que mora o perigo! Na mesma frequência que o médico pode indicar um remédio (conhecido, testado, aprovado e com bula), amigos, vizinhos ou mesmo outros profissionais não afeitos ao tratamento daquela pessoa eventualmente indicam, baseados em sua experiência pessoal ou relatos, uma solução natural na tentativa de ajudar.
O problema é que o fruto dessa “boa vontade” pode, em vez de ajudar, reagir de forma negativa com o tratamento médico.
Mesmo um chazinho que parece inofensivo pode brigar, bloquear ou ampliar o efeito colateral de um medicamento que está em uso. Tudo pode ter “efeito”. Sendo assim, o uso indevido de um chá, uma erva ou mesmo um fitoterápico, manipulado na farmácia, pode interferir no resultado da terapia prescrita.
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Em busca do tratamento integral
Nós, médicos, temos como nossa maior função tratar e curar os pacientes. De forma alguma somos contra produtos ou ações que tenham como objetivo ampliar a qualidade de vida ou auxiliar na redução de efeitos colaterais ruins. Mas receitar um chazinho ou um remédio natural implica ter conhecimento e responsabilidade.
Práticas integrativas têm ganhado força no apoio da qualidade de vida de pessoas com câncer. Cada vez mais vemos grandes centros oncológicos estimulando e oferecendo práticas que melhoram o bem-estar físico e mental dos pacientes e são estudadas com essa finalidade. É o caso da ioga, da acupuntura, da musicoterapia, da aromaterapia…
Mas é importante deixar claro que eles INTEGRAM e se unem ao tratamento convencional para a doença. A ideia é valorizar o cuidado do paciente como um SER INTEGRAL, não somente como uma parte que precisa de ajuda.
Só que essa abordagem requer ciência e muito cuidado. Infelizmente, há menos de um mês, deparei com uma receita médica de três folhas com a prescrição de remédios naturais feita por outro profissional para uma das minhas pacientes, que está se tratando de um câncer invasivo na mama. Ela chegou para mim com a seguinte dúvida: “Doutora, posso fazer uso de todos esses medicamentos?”
A paciente me contou que a lista de produtos naturais havia sido passada por um médico com o objetivo de melhorar a energia e a libido dela após o uso do tamoxifeno, medicamento tradicional que busca parar o crescimento de células tumorais que se alimentam de hormônios. O tamoxifeno é indicado para reduzir o risco de retorno da doença e de morte, e foi amplamente estudado.
A leitura da receita de três folhas com remédios naturais foi difícil. Eu não conhecia inúmeros nomes e precisei pesquisar, um a um, os produtos listados para entender suas funções e possíveis riscos e interações medicamentosas. Mas, no fim do receituário, veio o choque: um dos produtos anotados era progesterona, exatamente um dos hormônios femininos que alimentam as células cancerosas e estávamos tentando bloquear para curar o câncer.
E aí? O que fazer nesse momento? Orientei a paciente a não fazer uso dos “remédios” prescritos, a começar pelo fato de um deles aumentar seu risco de ter novamente a doença. Mas não podia parar aí. Daí resolvi escrever este texto.
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Lista de orientações
Não tenho como descrever aqui todas as interações medicamentosas, nem mesmo as conheço, até porque, em nosso país, há um rol de chás, fitoterápicos e produtos regionais, mais ou menos conhecidos e utilizados pela população muitas vezes sem aval médico.
Mas posso ajudar vocês a fazer as perguntas que podem garantir sua tranquilidade e saúde, no meio de um tratamento oncológico ou não. Tenha em mente que todo chazinho ou remédio natural tem seu princípio ativo e poder biológico. Então não pode ser considerado inócuo.
Então, antes de sair usando qualquer coisa, procure…
– Saber tudo o que for possível sobre o tratamento médico que está fazendo (os remédios que toma, seus efeitos colaterais);
– Se for tomar um medicamento que tenha bula, não deixar de lê-la, principalmente o item “informações aos pacientes”;
– Conversar sempre com seu médico: se não soubermos a resposta, podemos buscar a informação para ajudar;
– Nunca usar nada sem saber de onde veio, qual é a forma adequada de usar e se pode interferir no tratamento que você já está fazendo;
– Sempre dividir com o médico o que anda tomando ou fazendo, por mais simples que seja o chá ou o remédio natural;
– Indagar o profissional, caso seja ele que prescreveu o produto, sobre a possível interferência dele com os outros medicamentos usados;
– Tirar suas dúvidas com o médico sempre;
– Pensar se não vale uma segunda opinião se se sentir inseguro com a recomendação dada.
No tratamento oncológico, pense no seu médico como o comandante de um barco cheio de tripulantes (profissionais de saúde) e que cada um tem sua função. Cabe a esse médico coordenar a equipe e a interação com o paciente. E orientá-lo a navegar sem armadilhas até um porto seguro, vivendo mais e melhor.
* Fabiana Makdissi é mastologista e líder do Centro de Referência da Mama do A.C.Camargo Cancer Center