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O mundo é bipolar?

Cresce o número de pessoas diagnosticadas com bipolaridade - e, assim, a quantidade de gente que precisaria tomar remédio para controlar a oscilação de humor. Mas há quem questione esse boom como um reflexo da medicalização da vida

Por André Bernardo (colaborador)
Atualizado em 28 out 2016, 02h52 - Publicado em 22 jan 2016, 14h22

Mr. Jones é um sujeito delirantemente impulsivo: sobe em uma construção e coloca a própria vida em risco julgando-se capaz de voar; interrompe um concerto e tenta reger, ele mesmo, uma sinfonia de Beethoven; cabisbaixo, vaga pelas ruas sem destino. Mr. Jones é Richard Gere no filme de mesmo nome, o primeiro a retratar, em 1993, o transtorno bipolar de humor, em que o indivíduo alterna momentos de euforia com crises depressivas. Mr. Jones é um personagem de ficção (com os exageros da ficção), mas o transtorno é real. Nos anos 1990, ele afetava 1% dos americanos. Hoje, estima-se que 25% deles tenham algum grau de bipolaridade. Só que esse boom de proporções mundiais é alvo de críticas. Para o psicanalista britânico Darian Leader, autor do polêmico Simplesmente Bipolar (Zahar), recém-lançado no país, inventou-se uma nova epidemia. Não é que não existam bipolares. “Mas qualquer um de nós pode apresentar mudanças repentinas de humor. Os diagnósticos é que estão cada vez menos precisos e confiáveis”, sentencia.

Leader mantém os dois pés atrás diante do aumento de 4 000% no número de pessoas detectadas com bipolaridade nas últimas décadas. E bate de frente com a indústria farmacêutica. Argumenta que o termo ganhou força nos anos 1990 – antes, o nome era psicose maníaco-depressiva -, período em que a patente de muitos antidepressivos começou a expirar. Era preciso ter um novo nicho para vender remédio. O rótulo pegou e atualmente é usado a torto e a direito, inclusive pela gente, quando alguém tem um acesso de fúria ou faz o que lhe dá na veneta.

O distúrbio de verdade, porém, não é identificado com tanta facilidade. “O diagnóstico envolve a análise dos sintomas, seu tempo de duração e o grau de prejuízo no dia a dia”, explica a psiquiatra Ângela Scippa, presidente da Associação Brasileira de Transtorno Bipolar (ABTB). Nos picos de euforia (ou mania), o bipolar fica com a energia lá em cima, autoestima elevada e não quer ser contrariado. “Somos os reis do mundo. Não há nada fora do nosso alcance”, descreve o ator e cineasta inglês Stephen Fry no documentário A Vida Secreta de um Maníaco-Depressivo. Já nos momentos de angústia, vêm a sensação de vazio, fadiga e até pensamentos suicidas. “A vida é curta e sem sentido. Para que viver?”, se perguntava a psiquiatra americana (e bipolar) Kay Redfield Jamison na autobiografia Uma Mente Inquieta.

As crises variam em intensidade, frequência e duração. No geral, levam de uma semana a seis meses. Mas, para alguns, a mudança de humor ocorre num zás-trás. “É uma viagem sem escalas da euforia à depressão em minutos”, conta o psiquiatra Rodrigo Machado-Vieira, do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (IPq-USP).

Levando em conta o último Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), que classifica dois tipos de bipolaridade (um deles com arroubos de impulsividade mais brandos), a prevalência do distúrbio no Brasil é de 1%. Mas, segundo a ABTB, ao incluir todas as suas manifestações, o número avança para 4% – isto é, 8 milhões de brasileiros. “O aumento nos diagnósticos se deve à criação do conceito de espectro bipolar”, explica o psiquiatra Elie Cheniaux, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Nesse contexto entram pessoas com depressão que desenvolvem episódios de mania ou euforia ao fazer uso de antidepressivos”, exemplifica.

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Na contramão do que alardeia o psicanalista britânico, o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Antônio Geraldo da Silva, declara que o Brasil enfrenta, na realidade, um cenário de subdiagnóstico. “A maioria dos pacientes não tem acesso à rede pública de saúde e muitos adoecem sem sequer marcar uma consulta”, denuncia.

Os dois lados do fenômeno
Para Darian Leader, o curto tempo entre médico e paciente dentro do consultório é um dos fatores que conspiram a favor de um diagnóstico simplista e que resulta em prescrições fáceis e equivocadas. “Só conseguimos ajudar o paciente quando nos dedicamos a ouvir sua história e analisá-la. Na maioria dos casos, as pessoas são informadas apenas de que têm uma doença biológica e que vão precisar tomar remédio a vida toda, o que nem sempre é verdade”, afirma. O especialista não se diz contra os medicamentos, mas pede uma abordagem menos farmacológica da mente humana.

Seu livro divide opiniões, é claro. De um lado, entidades como o Conselho Federal de Psicologia (CFP) endossam as críticas do psicanalista. “Questões complexas de ordem social, política e cultural são reduzidas à lógica médica. Numa sociedade imediatista como a nossa, vincula-se tudo aquilo que não está de acordo com as normas sociais a um problema orgânico”, avalia Carolina Freire de Carvalho, representante do CFP. Do outro lado, instituições como a Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos (Abrata) rebatem as teorias de Leader. “A bipolaridade pode até ser um nicho dos laboratórios, mas a ampliação no diagnóstico se deve a um aprimoramento em sua detecção”, diz a psiquiatra Rosilda Antônio, do conselho científico da Abrata.

O que dificulta as coisas é que o diagnóstico é exclusivamente clínico, ou seja, depende da interpretação do especialista. Assim, um indivíduo que passa por um período atribulado pode ser classificado como bipolar… e um autêntico bipolar pode passar despercebido. “Em geral, os portadores demoram cerca de dez anos até receber tratamento adequado com remédios que estabilizam o humor”, relata Karla Mathias de Almeida, vice-coordenadora do Programa de Transtorno Bipolar do IPq-USP. De acordo com Cheniaux, a ausência de um exame objetivo (de sangue ou imagem) não raro faz com que a bipolaridade seja confundida com depressão, esquizofrenia… “Usando os mesmos critérios, dois médicos podem divergir sobre o quadro de um paciente”, afirma.

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Como diagnósticos complexos costumam pedir tratamentos complexos, o controle da bipolaridade cobra medicações, sessões de psicoterapia e até mudanças de hábito. Na seara dos comprimidos, destacam-se os remédios à base de lítio, um clássico modulador de humor. “Na Antiguidade, já se prescreviam banhos em fontes ricas em sais de lítio para pessoas agitadas”, conta o psiquiatra Teng Chei Tung, autor de Enigma Bipolar (Summus). Mas o médico pode receitar também antidepressivos, antipsicóticos e anticonvulsionantes. O governo brasileiro inclusive ampliou o número de medicamentos no sistema público para essa finalidade. “Se o portador não se trata direito, pode vir a sofrer prejuízos irreversíveis, de perda cognitiva a atrofia cerebral”, alerta Machado-Vieira.

A bipolaridade é domada também com psicoterapia – ela não elimina os remédios, e vice-versa. Cheniaux indica a modalidade cognitivo-comportamental. Já o médico Ricardo Krause, da Associação Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Profissões Afins, prefere a psicoeducação. As sessões procuram ensinar ao paciente e à sua família como se entender, identificar as crises (tantas vezes sem motivo) e superar as dificuldades impostas pelo distúrbio.

Para a ilustradora britânica Kate McDonnell, autora do desenho acima e diagnosticada em 2010, a solução está na combinação de “remédio, educação e amor”. “Durante anos tentei esconder do mundo o que sentia. Algo estava errado, mas não sabia dizer o quê. É como se estivesse caindo de uma montanha e não tivesse onde segurar”, descreve. Fã de Picasso e Basquiat (outros célebres artistas bipolares), Kate conta que, ao contrário do que se pensa, criatividade e bipolaridade nem sempre andam juntas.

Hoje, aos 38 anos, ela lê tudo sobre o transtorno, segue à risca o tratamento e, na medida do possível, evita situações de estresse. E é assim que casos como o da ilustradora se tornam uma realidade entre bipolares, que conseguem retomar suas atividades e levar uma vida produtiva. “O problema não tem cura, mas é controlado com a adesão aos remédios e a um trabalho psicossocial”, frisa Rosilda. Kate McDonnell conhece bem esse filme. Seus desenhos continuam sendo feitos em preto e branco. Mas sua vida já ganhou um colorido especial.

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Como a bioquímica cerebral explica?
A causa exata do transtorno bipolar permanece desconhecida. Sabe-se, ao menos, que há fatores genéticos e ambientais envolvidos. “Se um dos pais tiver o distúrbio, o risco de um dos filhos desenvolver a doença é de 20 a 40%”, calcula o psiquiatra Rodrigo Machado-Vieira, da USP. Estudos sinalizam que os bipolares têm alterações em áreas do cérebro como o córtex pré-frontal, responsável por tomadas de decisão, e nos níveis de neurotransmissores como a serotonina e a dopamina, ligadas à sensação de bem-estar. O uso de substâncias psicoativas, como álcool, anfetamina e cafeína, contribui para a desordem. “Mas ela só é desencadeada se houver predisposição”, pondera Machado-Vieira.

Pequenos bipolares
O diagnóstico da bipolaridade em crianças também decolou. Embora o pico de incidência ocorra entre os 18 e os 25 anos, o distúrbio pode atingir gente mais nova. Segundo Darian Leader, autor de Simplesmente Bipolar, as receitas médicas para bipolaridade na infância cresceram 400% de 1990 pra cá. O psiquiatra Fábio Gomes de Matos e Souza, da Universidade Federal do Ceará, diz não estar surpreso, porque o aumento na prescrição de remédios se deve à detecção mais precoce. “E isso é importante para evitar as crises”, avalia. Há quem diga que flagrar o quadro nessa fase é ainda mais árduo porque outros transtornos têm características semelhantes, caso do déficit de atenção e hiperatividade.

“Entre os pequenos, a sensação de nunca se cansar é geralmente um dos primeiros sintomas. Por isso muitas vezes eles são tidos como hiperativos”, observa Silzá Tramontina, coordenadora do Programa de Crianças e Adolescentes Bipolares do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

A médica esclarece que, apesar de o diagnóstico seguir os mesmos critérios do de adultos, existem diferenças: as mudanças no ciclo euforia/depressão são mais rápidas e a estabilização do humor, mais demorada. O neurologista Ricardo Krause reforça que, antes do veredicto, é preciso investigar fatores que afetam o comportamento, como abusos e bullying.

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E eu, sou bipolar?
O transtorno é marcado por alternância de humor, mas o diagnóstico não é simples

Do fundo do poço…
•    Tristeza profunda
•    Baixa autoestima
•    Isolamento
•    Perda de sono
•    Redução da libido
•    Cansaço excessivo
•    Lentidão de movimento
•    Sentimento de culpa

…a dono do mundo
•    Agitação
•    Compulsão ao falar
•    Autoestima elevada
•    Otimismo exagerado
•    Alegria desproposital
•    Agressividade
•    Pensamento acelerado
•    Dificuldade de concentração

Medicalização da vida
Outros distúrbios acusados de serem superexplorados por médicos e laboratórios

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Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade
O número de crianças diagnosticadas e tratadas sobe drasticamente. De olho nisso, o último manual americano de psiquiatria sugere que a detecção deve ser feita a partir dos 12 anos – e não dos 7, como era antes.

Transtorno Disruptivo de Desregulação de Humor
Parece bipolaridade, mas não é. O distúrbio abrange crianças e adolescentes dos 5 aos 18 anos que apresentam episódios de irritabilidade e descontrole comportamental.

Transtorno Depressivo Maior
A nova edição do manual da psiquiatria americana assinala que, se um indivíduo fica de luto por mais de duas semanas, já pode ser considerado depressivo.

Transtorno de Ansiedade Generalizada
É descrito como “preocupação excessiva ou expectativa apreensiva”, que perdura por seis meses e vem junto de tensão muscular, dificuldade para dormir e se concentrar… Como a análise é subjetiva, o paciente pode se enquadrar ou não.

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