O colesterol alto pode ser culpa de uma falha genética
A hipercolesterolemia familiar, que aumenta o nível de colesterol ruim, já pode contar com novas estratégias para evitar infartos e AVCs
Descendentes dos portadores da mutação genética têm 50% de chance de também carregar a falha.
Foto: Nik Neves
Portadores de hipercolesterolemia familiar são mais propensos à formação de placas que entopem as artérias e deflagram distúrbios cardiovasculares. A doença é fruto de defeitos genéticos que provocam falhas no sistema de limpeza das artérias. O resultado é o aumento do colesterol ruim, o LDL estopim para a aterosclerose.
A estimativa é que o Brasil tenha cerca de 300 mil portadores de hipercolesterolemia. No Instituto do Coração, em São Paulo, um programa chamado Hipercol Brasil identifica os pacientes com mutação no gene, responsável pela doença, os encaminha para tratamento e realiza exames nos familiares do paciente para detectar se eles também são portadores da falha genética. Mesmo se o paciente tem a mutação, mas a doença não se manifestou, a chance de seus descendentes herdarem o defeito é de 50%.
Na maioria dos casos, a hipercolesterolemia não apresenta sintomas. Por isso, uma das principais medidas de prevenção é medir o colesterol desde cedo. Quando antes for feito o diagnóstico, melhor será o tratamento.
Leia a íntegra da reportagem abaixo.
Imagine passar anos e anos com uma enorme carga de colesterol transitando pelos vasos. Não há coração que aguente! Por causa de taxas da molécula gordurosa que ultrapassam facilmente 500 mg/dl, os portadores da hipercolesterolemia familiar (HF) – por baixo, há cerca de 300 mil deles no Brasil – são mais propensos à formação de placas que entopem as artérias e deflagram doenças cardiovasculares. “Há pacientes que infartam antes dos 30 anos”, conta o cardiologista Raul Dias dos Santos, do Instituto do Coração, o InCor, em São Paulo, considerado uma das autoridades mundiais no assunto. O distúrbio é fruto de defeitos genéticos e interfere em receptores de células no fígado que são como pazinhas aptas a retirar o colesterol de circulação. Essa falha no sistema de limpeza resulta na elevação dos níveis da partícula LDL, o que serve de estopim para a aterosclerose.
Embora o jargão medicinês soe estranho, a hipercolesterolemia familiar não é tão rara assim. “Aqui no Brasil estimamos que a frequência da forma heterozigótica, a mais comum, seja de 1 em 300 pessoas”, revela a cardiologista Cinthia Elim Jannes, do Laboratório de Genética do InCor. E há a desconfiança de que existam ainda mais casos. A médica coordena, ao lado de Santos e outros profissionais, o programa Hipercol Brasil, que identifica, por meio de exames no DNA, mutações nos genes por trás da condição, encaminha pacientes dos quatro cantos do país para tratamento, além de apurar se há mais portadores na família.
“Utilizamos o chamado rastreamento em cascata”, diz Cinthia. Ou seja: quando se confirma um diagnóstico, os parentes mais próximos também passam por triagem. Isso porque o risco de pais, filhos ou irmãos apresentarem o distúrbio é alto. “Trata-se de uma doença com transmissão autossômica dominante, o que significa que, para um indivíduo portador de uma mutação, mesmo sem desenvolver o problema, a probabilidade de seus descendentes diretos herdarem o defeito genético é de 50%”, esclarece o cardiologista Andrei Sposito, da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo.
“Apesar de grande parte dos portadores de HF não apresentar nenhum tipo de sintoma, existem manifestações na pele que aparecem em uma minoria”, relata o cardiologista Hermes Toros Xavier, presidente do Departamento de Aterosclerose da Sociedade Brasileira de Cardiologia. O médico se refere ao aparecimento de bolas de gordura entre os dedos das mãos e dos pés, no calcanhar e nos joelhos – os xantomas, característica mais comum em pacientes homozigotos.
Como a doença não deixa de ser silenciosa e parece estar subestimada, há quem recomende a medição de colesterol a partir dos 20 anos em toda a população. “Quanto mais cedo o diagnóstico, mais eficaz o tratamento”, sentencia Cinthia. “Além de lançar mão de remédios que baixam o colesterol, é crucial a adoção de um estilo de vida saudável”, atesta Santos. A primeira Diretriz Brasileira de Hipercolesterolemia Familiar, elaborada em 2012, destaca, por exemplo, a necessidade de uma dieta bem regrada.
“Uma das principais recomendações é reduzir o consumo de alimentos ricos em gordura saturada”, diz Xavier. Muita parcimônia, portanto, na ingestão de carnes vermelhas, laticínios integrais e frituras. A atividade física é outra medida que não fica de fora. Assim como fugir do tabagismo e dos abusos etílicos, atitudes que, vale dizer, são bem-vindas independentemente de ter herdado ou não a HF.
Como nessa doença o apoio farmacológico é fundamental, uma das melhores notícias dos últimos meses é que estão chegando ao país novas drogas que reduzem pra valer os níveis de colesterol. É que as estatinas, comprimidos mais receitados para essa finalidade, nem sempre dão conta do recado. Desse modo, ganham destaque anticorpos monoclonais que, lá no fígado, fazem o sistema de faxina nos vasos funcionar direito. Com diagnóstico precoce e tratamento de primeira, o sonho de um coração livre de perigo pode, sim, virar realidade. E o melhor: para toda a família.
Caso de família
Quem tem um parente próximo que sofreu ataque cardíaco antes dos 55 anos deve dosar o colesterol desde cedo. Exemplo: se uma pessoa perdeu um pai por infarto aos 40 e poucos anos e tem um dos avós com histórico semelhante, isso significa que ela possui maior risco de carregar nos genes uma propensão para o colesterol alto. Se as taxas de LDL passarem de 130 mg/dl entre as crianças ou 190, no caso de adultos, indica-se um teste para apurar a hipercolesterolemia
Perigo maior
Complicações cardíacas estão à espreita nos casos heterozigotos de hipercolesterolemia – quando se herda um gene defeituoso somente de um dos pais. Mas a situação é bem mais ameaçadora se a herança vem tanto do pai como da mãe, característica dos pacientes homozigotos – cuja prevalência é estimada em 1 a cada 1 milhão de pessoas. Neles, as taxas de colesterol passam de 1 500 mg/dl. “Se não houver tratamento, a expectativa de vida é de 20 anos”, afirma o professor Andrei Sposito, da Universidade Estadual de Campinas.
Defeito mínimo, repercussão grande
Problema de fábrica
A mutação no DNA também está por trás de imperfeições em uma proteína própria da LDL, a ApoB. Por causa disso, a LDL não consegue se ligar direito aos tais receptores. Resultado: mais colesterol dá sopa na corrente sanguínea.
Falta aqui, sobra lá
Na HF, uma falha genética faz com que haja, nas células do fígado, um número menor de receptores responsáveis por captar as partículas de LDL – aquela bolota que transporta o colesterol pelos vasos. Assim, um monte de moléculas da gordura fica vagando na circulação.
Fígado: produção e coleta seletiva
O órgão fabrica até 70% do colesterol do corpo e suas células têm receptores específicos que recolhem o LDL-colesterol. A gordureba é, então, lançada para a bile e, de lá, vai parar no intestino, por onde se despede.
Só faltava essa!
A doença interfere no funcionamento de uma enzima, a PCSK9, que participa, dentro da célula, da degradação dos receptores de LDL-colesterol. Trabalhando além da conta, a PCSK9 contribui para os níveis de colesterol decolarem.
Tratamento rigoroso
1. As boas e velhas estatinas
Essa classe de comprimidos é a primeira opção terapêutica e costuma ser utilizada em parceria com outras drogas. As estatinas bloqueiam a fabricação de colesterol no fígado e estimulam a produção de receptores de LDL. É assim que faz baixar os níveis da gordura no sangue.
2. Estratégia intestinal
O medicamento ezetimiba, também de uso oral, interfere na absorção de colesterol no intestino, impedindo que parte dele seja canalizado para o organismo. Também instiga o surgimento de receptores de LDL no fígado, elevando a captação do colesterol circulante.
3. Os anticorpos monoclonais
Essas drogas biológicas são a principal promessa para controlar a hipercolesterolemia familiar. Injetadas, elas inibem a enzima PCSK9 no fígado, permitindo que sobrem mais receptores nas células hepáticas capazes de capturar moléculas de LDL-colesterol. Os anticorpos monoclonais já são usados em pacientes, mas ainda estão mais restritos a caráter de pesquisa, e devem ser combinados às estatinas para garantir maior efeito anticolesterol.