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Documentário “Heal” na Netflix: crueldade disfarçada de autoajuda

O filme mostra supostos casos de cura pelo poder da mente. Mas, em resenha para a Revista Questão de Ciência, um jornalista critica a narrativa

Por Carlos Orsi, editor-chefe da Revista Questão de Ciência*
Atualizado em 4 nov 2019, 17h34 - Publicado em 19 fev 2019, 18h04

Elizabeth passa toda a vida adulta praticando ioga, alimentando-se predominantemente de vegetais crus, consumindo sucos “detox”, estudando acupuntura e, de repente, é diagnosticada com câncer de fígado e intestino, em estágio avançado. Depois de um curso de quimioterapia e um de radioterapia, o tumor principal e as metástases desaparecem, e ela se considera curada. Vitória da ciência, claro! Ou não? Não de acordo com a interpretação dada à narrativa pelo documentário Heal – O Poder da Mente, disponibilizado recentemente pela Netflix no mercado brasileiro.

Mesmo após o médico de Elizabeth sugerir que, talvez, a remissão rápida e relativamente simples possa ser explicada por um erro do diagnóstico inicial, na avaliação da gravidade do tumor, a razão promovida pelo filme é a liberação de energias emocionais negativas, acumuladas por décadas, desde o dia em que a paciente, ainda criança, foi humilhada pelos coleguinhas de escola por causa de um pacote de biscoitos.

Produzido, dirigido, escrito e apresentado pela atriz Kelly Noonan Gores, “Heal” acompanha a trajetória de duas mulheres. Além de Elizabeth com seu câncer, temos Eva, sofrendo com estranhas erupções cutâneas, sem diagnóstico claro, também em busca de uma cura.

Falas das duas pacientes, e cenas de suas visitas a médicos e terapeutas alternativos, são entremeadas por conversas com autores de best-sellers de autoajuda mística, como Deepak Chopra, Bruce Lypton, Kelly Turner.

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Para quem não os conhece, Chopra defende a ideia de que o corpo humano é um “campo de energia e consciência”, e que é possível parar de envelhecer, ou mesmo rejuvenescer, usando meditação, exercícios físicos e força de vontade.

Lypton, por sua vez, acredita que, como a regulação genética – a definição de quais genes serão ativados dentro das células, e em que momento – depende, em parte, de estímulos ambientais, então é possível ligar ou desligar genes com o poder da mente.

Já Kelly Turner viajou o mundo perguntando a pessoas que sobreviveram ao câncer, mesmo contra os piores prognósticos, como achavam que tinham conseguido isso – o que faz tanto sentido quanto perguntar a um ganhador da loteria como escolhe seus números.

Também fazem aparições Rob Wergin, o “Conduíte Divino” (que se diz capaz de transmitir “energias de cura” diretamente de Deus para os pacientes), o “médium médico” Anthony Williams e, de modo mais modesto, João de Deus. O filme é de 2017, antes do escândalo atual de abusos sexuais que atinge o brasileiro – pena que nenhum quiromante ou tarólogo tenha avisado Noonan Gores a tempo.

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Física Quântica, Buda, Epigenética

Um dos gurus-coaches-mestres-entrevistados de Heal cita a frase “cada homem e mulher é arquiteto da própria saúde”, e a atribui ao Buda. Trata-se de uma falsa atribuição: Sidarta Gautama, o Buda que ensinou na Índia por volta de 500 AC, muito provavelmente nunca disse isso.

Mas o erro, afirmado com segurança e um ar de profunda sabedoria, é típico do documentário como um todo: tudo o que se tenta deduzir, ali, das ciências, da física, da epigenética, do efeito placebo, é falso, mal atribuído, ou está fora de contexto.

Primeiro, a física: os participantes do filme parecem todos achar que a equivalência entre matéria e energia da Relatividade, e os aspectos mais surpreendentes da física quântica, de algum modo, validam uma espécie de dualismo – matéria e espírito seriam entidades separadas – e a predominância do espiritual: se “tudo é energia”, então o mundo físico não passa de uma fachada manipulável pela vontade.

Há muita coisa errada nessa linha de pensamento, começando pelo fato de que a energia da física quântica e relativística é uma propriedade do mundo físico, mensurável e manipulável por meio de ferramentas físicas, não um poder abstrato ou divino. Em lógica e retórica, isso se chama “equivocação”: o erro (ou má-fé) de usar a mesma palavra com sentidos diferentes num mesmo argumento, fingindo que não houve mudança.

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Os participantes do documentário mostram-se, seguidas vezes, fascinados por exemplos de que estados mentais estão correlacionados a estados fisiológicos, mas em nenhum momento parecem se dar conta de que isso não representa uma hierarquia – a mente é mais poderosa que a matéria – e, sim, uma identidade: a mente é mais um tipo de estado fisiológico.

Outros conceitos científicos abusados durante o programa são epigenética e efeito placebo, ambos alvos de exageros tremendos. A epigenética – que trata dos mecanismos celulares que levam certos genes a se expressar ou seguir em silêncio – é apresentada como a ponte entre pensamento positivo e a biologia celular: “Se mudo minhas crenças sobre a vida, mudo os sinais que estarão entrando e ajustando o funcionamento da célula”, diz Bruce Lypton, autor de livros como The Biology of Belief, olhando para a câmera.

Lypton salta da constatação de que diferentes hormônios podem levar células-tronco idênticas a diferenciar-se em diversos tipos de tecido, ligando e desligando genes, para a conclusão, totalmente injustificada, de que diferentes pensamentos podem ter o mesmo efeito, e em qualquer tipo de célula. Se isso fosse verdade, deveria ser possível transformar um dedo numa orelha – ou regenerar um membro perdido – apenas desejando algo assim.

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Salto semelhante é dado por Joe Dispenza, autor de You Are the Placebo. O escritor parte da constatação de que o efeito placebo – uma mistura de condicionamento clássico e sugestão – é capaz de levar o corpo a produzir analgésicos opioides, para a alegação, completamente sem pé nem cabeça, de que crença e fé são capazes de induzir o corpo a produzir “qualquer coisa” que seja necessária para resolver um problema de saúde.

Dizpensa alega ter sarado de uma lesão grave, na coluna vertebral, usando apenas visualizações e pensamento positivo.

Em síntese

As alegações centrais de Heal – O Poder da Mente são de que todas as doenças são autoinfligidas, provocadas por estresse emocional (emoções ruins criam “densidade”, que ou enfraquece o sistema imunológico ou causa câncer, ou ambos) e, portanto, são autocuráveis, e sabemos disso porque física quântica e epigenética blábláblá.

Existe um esforço, não muito sincero, de parecer não culpar a vítima (em algum momento se diz que você não tem culpa de causar o seu próprio câncer, se o estilo de vida moderno inevitavelmente “polui o subconsciente” de todos), mas a mensagem é clara: tudo acontece por uma razão, e a razão está na sua cabeça.

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Noonan Gores tenta vender isso como uma palavra de esperança. Mas não é. É uma palavra de desespero e culpa.

A ideia de Kelly Turner, expressa em seu livro Radical Remission, de que pacientes que se recuperam de tumores malignos, mesmo depois de esgotadas as opções de tratamento, “encontraram a cura de seus cânceres” é talvez a manifestação mais clara (e ingênua) desse princípio. Colecionar os hábitos desses “sobreviventes radicais” não faz o menor sentido sem um grupo de comparação: o de pessoas que, cultivando os mesmos hábitos, não sobreviveram.

O documentário acompanha um homem, que se apresenta como paciente de câncer cerebral, tendo um êxtase místico nos braços de Rob Wengin, o “Conduíte Divino”. Todos na sala se emocionam, e fica implícito que o paciente acredita ter sido curado. Mas foi? O filme não nos diz. A história para aí.

Eva, a segunda personagem principal, termina o documentário da mesma maneira como começou: sem diagnóstico ou tratamento claro definido para seu problema de pele. Um médico receitou-lhe esteroides; outro, antibiótico. A terapeuta holística que a ajudou a reviver traumas de infância também não produziu nenhum avanço.

A principal cura apresentada em Heal – O Poder da Mente é a de Elizabeth, que teve câncer e passou por quimioterapia e radioterapia. Mas o filme se recusa a ligar os pontos: a medicina “ocidental” é um monstro agressivo, e é a terapia alternativa que leva os louros. A realidade é o contrário disso: o uso terapias alternativas eleva o risco de vida para pacientes de câncer.

O verdadeiro “poder da mente” está em ignorar o óbvio e apaixonar-se por uma fantasia pseudocientífica, cruel – mas muito lucrativa para quem a vende.

*Autor deste texto, Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência. O conteúdo acima foi publicado originalmente nesse veículo.

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