Silenciosa, a doença renal crônica no seu estágio mais avançado geralmente aparece de repente, e atinge, sobretudo, pessoas com diabetes e hipertensão. Atualmente, cerca de 140 mil pessoas sofrem com a falência dos rins no Brasil e dependem de tratamentos de diálise para viver. O transplante, que seria o tratamento de eleição por proporcionar maior liberdade e tempo de vida para esses pacientes, nem sempre é possível — e, na maior parte das vezes, não acontece tão rápido.
Resta, então, um dia a dia difícil, especialmente no caso da hemodiálise, procedimento que requer um deslocamento para clínicas especializadas pelo menos três vezes por semana. Apesar de ser uma oportunidade de vida para indivíduos com a falência completa desses órgãos vitais, muitos pacientes têm dificuldades de adaptação ao tratamento, muitos desanimam com o comprometimento de sua vida social e produtiva e ficam com poucas esperanças em relação ao futuro.
Um dos fatores mais assustadores dessa realidade é a alta taxa de mortalidade da população renal. No nosso país, ela é cerca de 20% ao ano. Não é fácil ver que seus companheiros de tratamento vez por outra não estão mais por ali porque faleceram. E se perguntar quando será a sua vez.
As principais causas dessa situação são as complicações cardiovasculares e as infecções. E esse cenário move uma autêntica luta em prol do aumento da qualidade e da expectativa de vida do paciente renal. Luta que vem sendo travada há anos por profissionais de saúde, pesquisadores, fabricantes de produtos e equipamentos e pelos próprios pacientes.
O plano terapêutico para os casos de falência renal é extremamente complexo. Por enquanto, ainda não há no mundo uma medida, recurso ou tratamento que isoladamente possa reverter toda a fragilidade dos pacientes. No entanto, a combinação de estratégias de manejo clínico e terapias mais modernas podem reduzir os efeitos da doença, impactando positivamente na sobrevida.
É o caso da hemodiafiltração (HDF), uma terapia de substituição da função renal que, através de uma alta dose de filtração, remove melhor toxinas prejudiciais à saúde. Uma vez que o rim saudável é um filtro perfeito, não é de se estranhar que um tratamento que se aproxime mais do seu trabalho possa melhorar os desfechos diante da doença renal crônica.
Embora esse tratamento exista há anos, um empecilho tecnológico limitou seu uso em clínicas de diálise. A reposição da filtração que precisava ser feita para cada paciente implicava o uso de imensas bolsas de soro, de preço altíssimo e difícil manejo. Daí que essa abordagem só era oferecida em ambientes de terapia intensiva e para pacientes muito graves.
Somente nos anos 2000, com a possibilidade de realização dessa reposição através da produção de um líquido estéril pela própria máquina, é que a terapia pôde chegar ao nível ambulatorial e se tornar mais acessível. Esse novo modelo, batizado de hemodiafiltração online, já é utilizado em 20% dos pacientes em diálise na Europa. E é a terapia recomendada na Inglaterra para todos os pacientes que realizam o tratamento crônico em clínicas de diálise.
No Brasil, a hemodiafiltração online para a doença renal crônica ainda não foi incluída no rol de procedimentos obrigatórios recomendados pela Agência Nacional de Saúde (ANS) aos planos de saúde. Atualmente, o acesso à terapia, mesmo com indicação médica, está limitado por falta dessa regulação.
A maioria dos convênios se nega a autorizar com base na falta da recomendação. Em alguns casos, só é possível o acesso através de decisões judiciais. Ainda que seja crescente o entendimento de alguns planos de saúde a respeito das vantagens do método, somente a inclusão no rol de procedimentos obrigatórios poderá permitir que pelo menos os pacientes mais críticos, entre eles crianças, possam se beneficiar da HDF.
O primeiro objetivo de qualquer médico, sempre que possível, é salvar vidas. E vidas que possam ser vividas com a esperança no futuro, com planos e sonhos. Mas, apesar dos diversos estudos e recomendações de profissionais e instituições renomadas no Brasil e no mundo, como a posição expressada pela Sociedade Brasileira de Nefrologia, a ANS não está acolhendo o pedido de incluir a terapia no rol dos procedimentos para 2021.
Mesmo reconhecendo que a hemodiafiltração online é capaz de reduzir em 16% a mortalidade por todas as causas e em 27% por motivos cardiovasculares entre os pacientes renais crônicos, a ANS nos surpreende recomendando a sua não inclusão no rol. E mesmo considerando um impacto orçamentário de somente 1,5%.
A pergunta que fazemos é: quanto vale uma vida? Quanto vale mais um ano de vida para alguém que quer ver um neto nascer, um filho se formar ou quer levar ao altar uma filha para se casar? Continuarão os pacientes renais crônicos, já tão comprometidos pela doença, sem acesso aos melhores tratamentos? Sem acesso a uma esperança?
Muito além de viver mais, precisamos pensar em viver melhor. E, embora a metodologia empregada pela ANS para analisar as melhorias com o uso da HDF não tenha sido conclusiva, precisamos levar em conta os depoimentos dos pacientes submetidos à terapia e seus impactos na rotina — que incluem mais disposição para as atividades e alívio dos sintomas. Os familiares e profissionais de saúde que acompanham essas experiências são testemunhas.
Em outros países da América Latina, como Argentina, Colômbia e México, já há um percentual maior de pacientes renais fazendo uso da terapia. E, em países mais desenvolvidos, a diferença é gritante. Em Portugal, 60%, Japão chega a quase 100% e na França, 38%. Na Rússia, 35% dos pacientes têm acesso à hemodiafiltração online. Como podemos torná-la mais acessível aos brasileiros?
Hoje, quando os rins não conseguem manter o corpo funcionando, a tecnologia pode entrar em cena para uma nova etapa da vida. Nossos pacientes merecem um futuro que valha a pena ser vivido.
* Ana Beatriz Barra é nefrologista e diretora médica da Fresenius Medical Care