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Os desafios da alergia ao leite de vaca no Brasil

Pesquisa com pais e escolas revela as principais dificuldades e oportunidades para melhorar o ecossistema de cuidados a crianças com essa alergia alimentar

Por Diogo Sponchiato
Atualizado em 8 fev 2021, 18h02 - Publicado em 8 fev 2021, 09h00
ilustrações de garrafas de leite
Diagnóstico correto e reconfiguração da dieta, com exclusão de leite e derivados, são essenciais para o controle da alergia à proteína do leite de vaca. (Ilustração: André Moscatelli/SAÚDE é Vital)
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Mais frequente, mais persistente e mais grave. É assim que estudos e especialistas vêm definindo a alergia alimentar, encabeçada no Brasil pela reação ao leite de vaca. “Em um levantamento que realizamos com dados nacionais, notamos que a taxa de sensibilização, o primeiro passo para a alergia em si, cresceu significativamente nos últimos 12 anos”, conta a alergista Renata Cocco, coordenadora do Departamento Científico de Alergia Alimentar da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai).

“E vejo a mesma coisa no consultório. Em 20 anos na área, que já somam cerca de 5 mil atendimentos, percebo que a demanda aumentou muito, com manifestações mais diversas e quadros se perpetuando em adolescentes”, completa a médica.

A nutricionista Mariana Del Bosco, professora do Centro Universitário Senac, presenciou o fenômeno na clínica… e em casa. As duas filhas tiveram alergia à proteína do leite de vaca (APLV), uma delas com reações inclusive a outros alimentos. “Há oito anos basicamente atendia crianças com sobrepeso e obesidade. Hoje é muito mais alergia alimentar”, relata.

Na maioria dos casos, a condição aparece na primeira infância e some até os 5 anos — como ocorreu com suas filhas, embora uma ainda tenha outros problemas alérgicos. Esse período, porém, pode ser desafiador para a criança e a família, com repercussões nutricionais, psíquicas e sociais.

É o que detecta uma nova pesquisa conduzida pelo Núcleo de Inteligência do Grupo Abril e VEJA SAÚDE, com o apoio da Danone Nutricia. A iniciativa foi um estudo dois em um: primeiro foram entrevistados pela internet mais de 600 pais e mães de crianças com APLV; depois foram ouvidas, por telefone, 207 escolas públicas e privadas. A ideia foi mapear o conhecimento e o comportamento das pessoas envolvidas no ecossistema de cuidados, da busca pelo diagnóstico à vida escolar.

Nessa jornada, são inúmeros os percalços e as angústias na rotina. “A pesquisa nos alerta para três grandes questões: a demora no diagnóstico, capaz de levar à inadequação nutricional e afetar a relação da criança com a comida no futuro, o impacto social e emocional em toda a família e a falta de preparo das escolas para lidar com as crianças com alergia alimentar”, analisa Mariana.

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dados da pesquisa
(Ilustração: André Moscatelli/SAÚDE é Vital)

De onde essa alergia vem?

A alergia alimentar é uma reação exacerbada do organismo à proteína de uma comida — pode ser leite, frutos do mar, amendoim etc. Tem um componente genético e gatilhos ambientais, como a exposição precoce a alguns ingredientes.

Filhos de pais alérgicos (e não só a alimentos) têm uma maior probabilidade de encarar alergias. Embora possam gerar confusão devido a sintomas parecidos (desconforto abdominal, diarreia…), a alergia ao leite de vaca e a intolerância à lactose são problemas distintos — neste caso, há uma reação ao açúcar do leite.

Estudos associam parto normal, leite materno e alimentação saudável na gravidez a um menor risco de a criança sofrer com alergias.

A jornada pelo diagnóstico e tratamento

O estudo mostra um longo percurso para chegar ao diagnóstico da APLV: mais da metade das famílias levou pelo menos três meses e passou por três médicos até bater o martelo. Antes disso, 75% dos entrevistados nem sabiam direito o que era esse tipo de alergia. O fato é que as pistas nem sempre são claras.

“Nos bebês, há um limite tênue entre o que é esperado pela imaturidade do organismo e as manifestações alérgicas. Cólica, refluxo e choro podem confundir os pais. A desconfiança começa com a intensidade dos sintomas”, observa Mariana.

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Renata, que também é professora da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein, na capital paulista, explica que as reações ao contato com o leite, ou um produto ou receita com o ingrediente, podem ser imediatas (até uma hora depois), com vermelhidão pelo corpo, inchaço na boca e, em situações graves, crise respiratória e choque anafilático… Ou tardias, dias ou semanas após a exposição, com vômito, diarreia, presença de sangue nas fezes e perda de peso — o que é mais comum em crianças de até 2 anos.

“Nas alergias, há uma relação de causa e efeito. O que torna desafiador no caso da APLV é que o leite é onipresente e não se restringe à culinária. Está até em lenço umedecido e sabonete”, diz a alergista.

As suspeitas devem ser levadas ao médico, que, com a ajuda de exames, pode cravar ou descartar o diagnóstico. “Precisamos investigar a história do paciente e dispomos de exames de sangue e de pele específicos. Se necessário, partimos para o teste de provocação oral, que é o padrão ouro para a detecção”, resume Renata.

Uma vez identificada a APLV, bola-se o plano terapêutico. A docente do Einstein o compara a uma pirâmide invertida. “Na base, lá no alto, estão os ajustes nutricionais; no centro, está o tratamento das reações alérgicas em si; e na ponta, lá embaixo, ficam as terapias de dessensibilização”, descreve.

As mudanças alimentares focam na exclusão total do leite e na reconfiguração da dieta, o que depende da idade da criança. Se o bebê está sendo amamentado e apresenta as reações alérgicas, a mãe precisa evitar qualquer alimento que contém leite. Quando o pequeno recebe fórmula infantil, versões especiais têm de entrar em cena.

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“A partir dos 2 anos, avaliamos se a criança consegue suprir os nutrientes pela alimentação e, se isso não acontece, podemos indicar produtos específicos”, esclarece Mariana. Já dá pra sacar que orientação profissional e individualizada é crucial, né?

E esse é um déficit apontado na pesquisa: quase metade dos entrevistados não considera totalmente satisfatórias as instruções do pediatra. A abordagem multidisciplinar, com médico, nutri e, em certos casos, fonoaudiólogo, pode fazer a diferença.

É essencial checar com o médico

Um passo decisivo no controle da alergia alimentar é o diagnóstico correto. “Existem análises mostrando que 25% da população acha que tem alergia e, quando se faz a avaliação médica, esse número cai para 2 ou 3%”, conta a alergista Renata Cocco.

A detecção é primordial inclusive para saber quem precisa se privar de um ingrediente como o leite. “Tão importante quanto saber que o paciente tem algo para prevenir problemas é voltar à alimentação normal quando não há nada identificado”, ressalta.

O manejo da alergia ao leite de vaca envolve exclusão dos lácteos em geral e, se preciso, adoção de fórmulas especiais. “Uma abordagem adequada evita ainda outras dificuldades alimentares depois”, diz a nutri Mariana Del Bosco.

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dados da pesquisa
(Infográfico: André Moscatelli/SAÚDE é Vital)

O preparo das famílias e das escolas

As adversidades que cercam a alergia ao leite de vaca se refletem no bem-estar e na dinâmica familiar — e isso se acentua quando a criança cresce e vai à escola. Começa pelo próprio pequeno, mais vulnerável às repercussões emocionais da restrição alimentar: segundo a pesquisa da Abril, ao menos um quarto sofre algum tipo de exclusão social.

A alergia também pesa na rotina e no bolso dos pais. Oito em cada dez participantes relatam impacto considerável nas atividades sociais, como participação em festas de aniversário, e cerca de 70% dizem que a APLV afetou as finanças domésticas. Apesar dos pesares, praticamente 80% dos respondentes se esforçam e seguem todas ou a maioria das recomendações do pediatra.

A apreensão em relação ao preparo das escolas para dar suporte a uma criança com alergia alimentar tem sua razão de ser. No braço da pesquisa com 207 escolas públicas e privadas de todas as regiões do Brasil, apesar de 73% contarem com alunos alérgicos, apenas 41% (e só 27% das públicas) asseguraram ter profissionais treinados para identificar e socorrer reações alérgicas — casos graves podem exigir aplicação de uma injeção de adrenalina quanto antes.

Outras lacunas são a oferta de alimentos específicos aos alérgicos — oito em dez escolas não dispõem de um espaço com essas opções nos eventos comemorativos — e a ausência de aulas de educação alimentar, registrada em quase 60% dos estabelecimentos.

Como nutricionista e mãe de duas meninas que tiveram alergia alimentar, Mariana acredita que a comunicação aberta entre família e escola e a capacitação desse ambiente são fatores indispensáveis para melhorar o acolhimento e a segurança das crianças com APLV e outras alergias.

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Ampliar o conhecimento de professores, monitores e merendeiras, garantir a supervisão na hora dos lanches sem impor exclusão e sensibilizar todos os alunos sobre o tema são algumas das táticas capazes de tornar mais tranquilo o dia a dia do alérgico.

Esse trabalho também ajuda a minimizar o impacto psicológico na infância e evitar episódios de bullying, uma situação que merece atenção com a persistência das alergias em adolescentes. “Precisamos explicar desde cedo que as diferenças existem e devem ser respeitadas”, frisa Renata.

Nessa linha, como é que fica beijar na boca, por exemplo, para alguém que tem reação ao mínimo contato com um ingrediente?, indagam tanto a médica como a nutricionista. Sim, são novos dilemas, mas que podem ser contornados com a devida informação e uma maior conexão entre famílias, escolas, profissionais de saúde, empresas e governos. A resposta aos desafios passa por mais orientação, mais preparo e mais atitude.

dados da pesquisa
(Infográfico: André Moscatelli/SAÚDE é Vital)
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