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“Precisamos repensar o uso do plástico pela nossa saúde”

Pesquisadora conta como substâncias presentes nesse material podem afetar nosso corpo e o que podemos fazer para minimizar os riscos

Por Diogo Sponchiato
20 dez 2019, 18h36

Para a nutricionista Andreia Friques, presidente da Associação Brasileira de Nutrição Materno-Infantil, a produção, o consumo e o descarte de plásticos hoje representam mais do que um problema ambiental. Trata-se de um desafio de saúde pública. Isso porque uma parcela considerável do material que circula por aí carrega e dispersa bisfenol A (BPA) e outros contaminantes capazes de bagunçar o corpo humano.

Segundo ela, já existem evidências significativas de que eles estejam contribuindo para o aumento nos casos de obesidade, puberdade precoce e outros distúrbios hormonais, além de alguns tipos de câncer.

A pesquisadora, que acaba de concluir seu doutorado pela Universidade Federal do Espírito Santo, investigou o impacto nocivo do tal BPA no sistema cardiovascular e mergulhou na literatura científica para entender até que ponto moléculas presentes nos plásticos comprometem nossas células.

Suas descobertas e angústias são divididas no livro Epidemia do Plástico, em que, misturando conceitos, dados e avaliações técnicas com alguns conselhos práticos, ela busca pintar um retrato atual do que sabemos sobre os efeitos de bisfenol A e companhia ilimitada no bem-estar humano e do planeta.

Na obra, Andreia explora as potenciais repercussões da exposição contínua e em doses baixas a esses elementos — algo que acontece quando consumimos alimentos embalados em plásticos e latas, manuseamos papel térmico (esse das notas fiscais) e até entramos no carro em um dia de sol. Em todas essas situações, estaríamos expostos aos contaminantes ambientais.

Para contornar esses riscos, a nutricionista não prega uma solução radical. Afinal, no nosso dia a dia há plástico por todos os lados. Mas ensina maneiras de minimizar a exposição — pelo nosso bem e o da família. Confira a entrevista a seguir:

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SAÚDE: De onde veio a ideia de investigar o impacto dos plásticos em nossa saúde?

Andreia Friques: comecei a despertar para a questão dos contaminantes ambientais ao iniciar meu trabalho de doutorado. Já estava estudando a influência do ambiente no corpo humano e o papel dos disruptores endócrinos, essas substâncias capazes de alterar nossos hormônios, como o bisfenol A (BPA). No doutorado tive a oportunidade de levar uma pergunta que eu queria responder. E eu vinha observando no consultório um aumento da obesidade, do número de meninas que menstruavam mais cedo… Isso vinha me inquietando.

Como os efeitos do BPA do ponto de vista hormonal já estavam bem esgotados, decidi investigar algo além e com o qual já tinha trabalhado em meu mestrado, o sistema cardiovascular. E, na pesquisa, descobrimos que o BPA também traz danos cardiovasculares. Além disso, fui motivada pela própria maternidade. Me indagava: como será o futuro dos nossos filhos e netos? E a partir daí passei a estudar mais, ler mais artigos…

Pelas evidências científicas atuais, podemos dizer que há uma relação de causa e efeito entre a exposição ao bisfenol A e problemas de saúde?

De forma geral, podemos dizer que sim. Existe essa relação. Estudos mostram, por exemplo, uma associação direta entre níveis elevados de BPA na urina de mães que tiveram filhos mais obesos. Além de dados extraídos da população, existem evidências de experimentos em laboratório. Quando eu contamino um rato com BPA, ele tende a ficar hipertenso e desenvolver doença cardiovascular. Daí a gente estabelece uma relação de causa e efeito.

Agora, dá pra extrapolar esses dados para os seres humanos? Em muitos casos, sim. Na minha pesquisa, por exemplo, mostramos que a contaminação leva a danos cardiovasculares potencialmente em humanos. O ponto é quanto isso vai impactar o organismo de uma pessoa, o que será diferente de uma para outra. Pessoas com mais adiposidade [gordura corporal] tendem a acumular mais bisfenol. Mas o que se percebe de maneira geral é que todos nós, querendo ou não, estamos expostos nesse mundo em que vivemos.

Existe um período crítico em que o ser humano está mais suscetível a esses efeitos nocivos?

Sim, os estudos e artigos mostram que há um período crítico no desenvolvimento humano para essa exposição. São os primeiros 1 100 dias da criança, que compreendem da fecundação até os 2 anos de idade. É que tudo que acontece nesse período pode determinar a saúde para o resto da vida. Além disso, estamos vendo um aumento nos casos de infertilidade e observando que os disruptores endócrinos também agem tanto no aparelho reprodutor masculino como no feminino. Muito provavelmente eles estão relacionados a esses índices alarmantes de infertilidade, que vêm aumentando nas últimas décadas.

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E devemos lembrar que a população não está só exposta ao bisfenol A, mas também a outros contaminantes, como o glifosato usado nas lavouras, o parabeno das maquiagens… Temos contato com várias dessas substâncias, todos os dias, em pequenas doses, que são cumulativas. E elas têm um efeito ainda maior nesses casais que querem engravidar e nessa fase dos 1100 dias da criança.

No livro, a senhora fala de uma infinidade de doenças que estariam ligadas ao BPA. Quais as principais?

Temos evidências científicas que relacionam a contaminação por BPA com a obesidade, assim como existem associações com puberdade precoce, distúrbios da tireoide, além de câncer de mama, ovário e testículo. Hoje não temos como provar que foi isso que causou a doença em si, mas sabemos que uma série de fatores ambientais aumenta o risco do problema, caso do BPA.

Existem até outras situações, que precisam de mais estudos, como uma possível ligação entre BPA e autismo. Devemos analisar isso com cuidado, mas tendo em mente que o aumento no autismo no mundo não é só fruto do acaso. Temos mais diagnóstico, aumento da população e questões genéticas envolvidas, mas não podemos excluir a possibilidade de uma interferência desses fatores ambientais. Já há artigos indicando que mulheres com maior nível de contaminação por BPA correm maior risco de ter filhos com autismo.

E o papel nas doenças do coração?

Foi exatamente isso que estudei em meu doutorado. O BPA age aumentando o estresse oxidativo no corpo. Essa reação de desequilíbrio pode aumentar por outros motivos, como presença de doenças, exposição a poluição… No meu estudo, peguei ratinhos no período de desmame, o equivalente a uma criança de 6 meses, que foram contaminados com a ingestão de BPA. O que a gente viu foi que, quando eles tinham a idade equivalente a uma de criança de 2 anos, sofreram um grande aumento do estresse oxidativo e uma diminuição muito impactante do óxido nítrico, molécula que faz o relaxamento dos vasos. É um quadro que eleva o risco de doenças cardiovasculares.

De tudo que investigamos em relação ao BPA, podemos dizer que o principal mecanismo envolvido na gênese de doenças, entre elas as cardiovasculares, é esse aumento do estresse oxidativo. Descobri que esse estresse também afeta significativamente o DNA das células da aorta [maior artéria do corpo, que se estende do abdômen ao tórax] e aumenta a morte celular nessa região.

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E hoje quais as principais formas de se contaminar com o BPA?

Quando olhamos para as pesquisas, vemos que a maior fonte de contaminação é a alimentar, provavelmente pelo contato da comida com as embalagens mesmo. Quando falamos de outros contaminantes além do BPA, isso se estende para a maquiagem, por exemplo. Tanto é que os estudos mostram que as mulheres são mais contaminadas que os homens por causa dos cosméticos.

Muita gente me pergunta se pode usar esse ou aquele plástico. E é difícil saber se o plástico tal tem mesmo bisfenol, ainda mais porque a indústria mistura algumas matérias-primas. O bisfenol é o que dá liga para o material, como se fosse o glúten do trigo para o pão. Vemos uma tendência hoje de produtos bisfenol A free, mas a indústria pode tirar um e acrescentar outro bisfenol no lugar.

Nos últimos tempos, acompanhamos muitos artigos falando também da contaminação pelo papel térmico [esse de notas fiscais], provavelmente pelo bisfenol S, e não o A. Mas há indícios de que ele seja tão ou mais tóxico que o A. É o que se está investigando agora. Então imagine o risco de quem trabalha e fica exposto constantemente a esses papéis.

No livro a senhora fala que há um movimento da indústria e dos governos para limitar o uso de BPA, mas ainda não se fez o bastante…

A legislação brasileira veta o BPA em utensílios produzidos para crianças, mas sabemos que as pessoas têm contato com ele em várias situações e de outras formas. O ideal é se tivéssemos legislação específica nesses outros contextos também. O que precisamos hoje é conscientizar a população e os governos para que todos saibam que falamos de um problema ambiental e de saúde pública.

Precisamos entender que há uma necessidade de trocar mais o plástico, de produzir menos lixo, porque esse material vai voltar para o planeta de alguma forma. Isso tendo em vista que o percentual do que é reciclado é muito pequeno. Então, não só a população precisa ser educada adequadamente em relação a isso, como o governo e as indústrias precisam tomar as medidas necessárias…

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Poderia citar algumas medidas para reduzir nossa exposição a esses contaminantes?

A primeira é substituir o plástico sempre que possível. Vale pensar se precisamos mesmo daquele plástico antes de usar. Hoje há esse movimento de retirada do canudo e troca por uma versão biodegradável. Mas a gente precisa se perguntar se precisa mesmo até dessa versão biodegradável. A segunda medida é buscar um estilo de vida o mais natural possível, principalmente em períodos como a gestação, porque assim nós vamos nos expor menos a contaminantes. Nesse sentido, também sugiro priorizar comida de verdade, que tem menos aditivos e está menos exposta a resíduos das embalagens.

E existem formas de nos desintoxicar e minimizar o impacto de plástico e BPA em nosso corpo?

Um corpo saudável consegue detoxificar melhor. Se ele se encontra em desequilíbrio, essa capacidade diminui. Agora, embora esse seja um campo novo na ciência, existem indícios de que alguns alimentos e nutrientes teriam um papel protetor.

No meu doutorado, por exemplo, também estudei o efeito do kefir, porque já tinha visto antes, no mestrado, que ele ajudava a reduzir a pressão arterial. Nesse trabalho constatei que ele age reduzindo o estresse oxidativo que o bisfenol aumenta. Além disso, existem alguns antioxidantes consagrados que têm esse potencial, caso da quercetina e da própria melatonina. Da mesma forma, alimentos ricos em vitaminas C e E e as berries parecem ajudar. É um campo novo, e o recado por ora é investir em tudo que remete à comida de verdade.

Para fechar, acredita que seja possível um mundo sem plásticos?

A moral da história é que levamos um estilo de vida moderno que está adoecendo mais o planeta e adoecendo mais as pessoas. O uso do plástico tem de ser repensado por todos nós. Precisamos pensar nele enquanto lixo que afeta o ambiente e como isso está retornando pra gente em forma de doenças. Não dá pra imaginar o mundo sem plástico hoje, mas dá, sim, pra imaginar um mundo com menos plástico.

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