Em 1951, a afro-americana Henrietta Lacks foi diagnosticada com câncer de colo de útero, vindo a falecer após oito meses de tratamento. Suas células, no entanto, contribuíram para diversos avanços científicos no campo da biologia e da medicina, como o desenvolvimento de medicamentos e vacinas, no estudo da aids, na evolução das técnicas de fertilização in vitro e no sequenciamento do genoma humano – sendo contemplada em mais de 75 mil pesquisas publicadas, bem como centenas de milhares de patentes depositadas no United States Patent and Trademark Office (USPTO).
Essa história, contada em detalhes no livro A Vida Imortal de Henrietta Lacks, de Rebecca Skloot (Companhia das Letras – clique para comprar), se deve ao médico George Otto Gey, à época chefe do laboratório de cultura de tecidos do Hospital Johns Hopkins, nos Estados Unidos.
Através do material biológico extraído da paciente, ele desenvolveu a primeira linhagem de células cultivadas fora do corpo humano, batizando-as sob o codinome “HeLa”. Entusiasmado com o experimento, passou a enviar amostras aos seus colegas pesquisadores e universidades mundo afora.
Desde então, diversos laboratórios passaram a produzir células HeLa em larga escala, o que deu início a uma indústria multibilionária de materiais biológicos humanos comercializados para fins de pesquisa.
Mas, para além de um legado científico imensurável, a história tem contornos bioéticos e legais que em muito contribuíram para a evolução dos direitos dos participantes de pesquisa clínica.
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Por anos, nem Henrietta, nem sua família (que também foi objeto de pesquisa posterior) consentiram ou sequer tiveram conhecimento sobre a utilização do seu material biológico para outras finalidades além da assistência à saúde.
Em 2013, quando o direito à confidencialidade e autonomia já eram legalmente consolidados na maioria do mundo, cientistas europeus anunciaram o sequenciamento do genoma de Henrietta e o divulgaram online, violando não só a privacidade da paciente como potencialmente a dos seus descendentes.
Na realidade brasileira, já existe um sistema de pesquisa clínica estruturado que inclui o Conselho Nacional de Saúde (CNS), a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e comitês de ética em pesquisa (CEPs) estabelecidos em hospitais, centros de pesquisa e instituições acadêmicas. Mas o PL 7.082/17, já aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado, pretende trazer segurança jurídica para a regulação e fiscalização de instituições públicas e privadas que realizam pesquisa com seres humanos no Brasil.
Dentre os direitos previstos aos participantes de pesquisa, já contemplados em normas éticas vigentes e reforçados no texto do PL, destacam-se:
- Garantia sobre a privacidade e a confidencialidade de seus dados pessoais.
- Consentir livremente com a sua participação em qualquer pesquisa. A pessoa deve ser informada sobre o objeto e os potenciais benefícios e riscos inerentes a disposição de seu material biológico, podendo retirar o consentimento para respectiva guarda e utilização a qualquer tempo.
- Acessar informações associadas a seu material biológico, devendo ser informado e orientado sobre achados que possam causar danos à sua saúde.
Por outro lado, a versão aprovada do PL manteve a proibição para qualquer tipo de remuneração do participante ou a concessão de vantagem por sua participação em pesquisa, exceto no caso de ensaios clínicos em estágio inicial e indivíduos saudáveis ou de bioequivalência.
Apesar da complexidade do tema, infelizmente o Congresso Nacional perdeu a oportunidade de explorar os prós e contras desse tipo de medida, bem como discutir formatos de compensação (financeira ou não) como uma forma de incentivo à participação de voluntários em um país com tamanho potencial para pesquisas clínicas, seja por sua diversidade, heterogeneidade ou índices de saúde.
Outro aspecto diz respeito à responsabilidade financeira dos patrocinadores de uma pesquisa realizada no Brasil. A versão aprovada pela Câmara previa que, no caso de pesquisas patrocinadas por governos, agências governamentais nacionais ou internacionais ou instituições sem fins lucrativos, a instituição brasileira colaboradora poderia assumir e isentar as responsabilidades de um ou mais patrocinadores da obrigação de indenizar e prestar assistência à saúde por eventuais danos causados.
Contudo, o Senado Federal retirou integralmente esta possibilidade da versão final.
Ainda assim, a aprovação do PL nº 6.007/23 possui muitos pontos positivos, como a definição de prazos máximos para deliberações éticas e regulatórias, o fim da necessidade de dupla aprovação de protocolos de pesquisa e a definição de critérios para fornecimento de produtos investigacionais em fase pós-estudo.
Espera-se que esse novo marco legal traga previsibilidade e mais atratividade para a realização de estudos locais, impulsionando o desenvolvimento técnico e científico do país, mas também o acesso e o poder de compra de tecnologia em saúde de um país responsável por viabilizar o acesso à tecnologias em saúde para mais de 200 milhões de pacientes.
*Renata Rothbarth é head da área de Life Sciences & Saúde do Machado Meyer Advogados