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Tá na internet, tá na TV, tá nos livros... tá no nosso dia a dia. O jornalista André Bernardo mostra como fenômenos culturais e sociais mexem com a saúde — e vice-versa.
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No mês do orgulho LGBTQUIA+, quadrinista fala sobre sua mudança de gênero

Autora de "Pequenas Felicidades Trans", Alice Pereira transformou seu diário em uma autobiografia em quadrinhos

Por André Bernardo
Atualizado em 30 jun 2021, 15h58 - Publicado em 30 jun 2021, 15h32

O recreio era a pior hora do dia. Como tinha dificuldade em se adaptar ao comportamento dos meninos, costumava ser alvo da provocação deles. Quando tentava se enturmar com as meninas, não era socialmente aceita. Conclusão: cresceu uma criança isolada, daquelas que brincam sozinhas e inventam seus próprios brinquedos.

Certo dia, estava em casa, brincando na sala, quando ouviu a mãe comentar: “Tá vendo essa mulher aí? Nasceu homem e virou mulher”. A tal mulher a que sua mãe se referia era a atriz e cantora Rogéria (1943-2017) que, naquele momento, participava de um programa de TV. Daquele dia em diante, a vida da pequena Alice, então com 9 anos, começou a mudar. “Por todos os dias da minha vida, sonhei com minha transformação”, revela a quadrinista carioca Alice Pereira em Pequenas Felicidades Trans (2019).

ilustração de uma menina vendo tv com sua mãe
Ilustração do dia em que a vida da quadrinista Alice Pereira começou a mudar. (Ilustração: Pequenas Felicidades Trans/Divulgação)

A HQ nasceu de um diário que Alice começou a escrever em 2016, quando deu início a sua transição de gênero. Sua autobiografia começa quando ainda era uma criança que não se identificava com o gênero que lhe foi atribuído no nascimento – “Não consigo dizer que tive uma infância feliz”, confessa, num dos primeiros quadrinhos – e segue até os dias de hoje, cinco anos depois de ter dado início à transição. “Me sinto como uma lagarta em um casulo, me preparando para me transformar em borboleta”, revela, mais adiante, em outro quadrinho.

Da infância à vida adulta, Alice Pereira revela inúmeros temores: ser expulsa de casa, ser agredida nas ruas, nunca mais ter um amor, entre outros. E relata incontáveis histórias: a primeira vez em que saiu às ruas com roupas femininas, em que foi a uma balada LGBT, em que foi à praia, etc. “Experiências banais, como entrar numa loja para comprar uma roupa ou sentar em um bar hétero lotado, se tornam momentos especiais quando se está em transição”, admite Alice, que é casada com a engenheira Danielle Tanaka, que revisou os textos e as ilustrações de Pequenas Felicidades Trans.

ilustração de alice saindo do casulo
Mais um quadrinho que representa parte da trajetória de Alice Pereira. (Ilustração: Pequenas Felicidades Trans/Divulgação)

Além da autobiografia em quadrinhos, a obra traz dois anexos curiosos. O primeiro deles, Coisas que a Gente Escuta, fala das muitas situações constrangedoras pelas quais pessoas trans ainda são obrigadas a passar. E indica perguntas e comentários, entre grosseiros e sem-noção, que não devem ser feitos a uma pessoa trans, como “você não vai se arrepender de fazer essa mudança?”, “não tem medo de Aids?” e “vai cortar o pinto fora?”.

O segundo, Pequeno Dicionário Trans, lista 14 verbetes, como cisgênero, intersexo, disforia, passabilidade, feminização facial e cirurgia de redesignação sexual. Se transgênero é a pessoa que não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer, cisgênero é a pessoa que se identifica. Pessoas trans ou cis podem ser heterossexuais, homossexuais ou bissexuais.

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Além de quadrinista, Alice Pereira é musicista. Toca baixo e tuba em bandas e blocos.

VEJA SAÚDE: Você tinha nove anos quando se descobriu transgênero, certo? Como foi essa descoberta? Qual é a lembrança mais forte que guarda deste momento?

Alice Pereira: Estava em casa, brincando na sala, quando apareceu a Rogéria em um programa de TV. Na mesma hora, minha mãe comentou: “Nasceu homem e virou mulher”. “Ué, e pode?”, pensei. Não imaginava que aquilo fosse possível. Foi um momento mágico na minha vida! Eu já me identificava com o universo feminino desde os três anos de idade. Já sabia que era diferente, mas não sabia que pudesse passar por esse processo de transição. Quando vi aquela mulher na televisão, passei a querer aquilo para mim.

Chegou a contar para alguém como se sentiu ou preferiu guardar para si?

Não, nunca contei para ninguém. Sempre guardei para mim. Só tive coragem mesmo quando resolvi me assumir e dar início à minha transição. Tinha muito medo e vergonha. Medo de como as pessoas iam reagir e o que iam pensar. Só tive coragem mesmo de contar para alguém quando me assumi como transexual.

Já adulta, você decidiu fazer a transição de gênero. Foi uma decisão difícil de ser tomada?

Sim, muito. Não à toa, demorei tanto tempo para me decidir. Tinha medo da reação das pessoas. “O que elas vão achar? Vão me entender? Vou ser aceita?”. Quando tomei a decisão de transicionar, em 2016, resolvi que não tinha como voltar atrás.

Cinco anos depois, qual foi a fase mais difícil? Hormônios, cirurgias, documentos?

A mais difícil? Volto a dizer: contar para as pessoas, sem dúvida. Não sabia como elas iam reagir. Se iam entender e aceitar. Em 2017, cheguei a entrar em depressão. Tinha muito medo de ser abandonada por amigos e família e terminar sozinha.

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Em 2019, você lançou Pequenas Felicidades Trans, sua autobiografia em quadrinhos. Como surgiu a ideia?

Quando dei início à transição, comecei a escrever um diário. Não tinha com quem conversar. Com exceção da minha psicóloga, ainda não tinha contado para ninguém. O diário era uma maneira de extravasar, sabe? Dali a pouco, pensei em transformar o diário em HQ. Em 2017, quando estava em depressão, comecei a publicar algumas tirinhas nas redes sociais. Toda semana era uma tirinha nova. Dos primeiros quadrinhos ao lançamento do livro, levei um ano e dez meses.

Como se sentiu ao transformar os relatos de seu diário em HQ?

Quando comecei a escrever, estava vivendo um período difícil. Transformar meu diário em HQ foi bom porque me deu um objetivo na vida. Comecei a reler o que tinha acontecido no início da transição. Foi uma catarse e tanto! Às vezes, chegava a chorar relendo o que tinha escrito ou desenhando algum quadrinho. Foi uma experiência libertadora. A repercussão também foi muito boa. Outras pessoas trans começaram a se identificar. Muitas me mandavam mensagens contando suas histórias.

Em um dos quadrinhos, você diz que “desenhar servia pra me livrar de algumas coisas e, ao mesmo tempo, responder perguntas que as pessoas me faziam”. Qual é o tipo de pergunta que, por exemplo, você não aguenta mais responder?

As pessoas viviam me fazendo sempre as mesmas perguntas. Esse, aliás, foi um dos motivos que me levaram a escrever o livro. Outro motivo foi listar perguntas que não devem ser feitas a pessoas trans. “Qual era seu nome?” e “já fez cirurgia?” são alguns exemplos.

Em outro quadrinho, você define seu livro como “a história de uma pessoa trans contada por uma pessoa trans”. Quais os clichês ou estereótipos mais recorrentes quando uma pessoa cisgênero resolve contar a história de uma pessoa transgênero?

Em geral, essas histórias são muito superficiais. É como se as pessoas trans só se assumissem para satisfazer as pessoas cis. Na maioria dos casos, as mulheres trans são apresentadas como caricaturas de mulher e os homens trans como caricaturas de homens. No cinema, escalam homens para interpretar mulheres trans e mulheres para o papel de homens trans. Em geral, sobra preconceito e falta sensibilidade.

Mais adiante, você fala do “medo de andar nas ruas e ser xingada” e “de ser agredida”. Você já sofreu preconceito, discriminação ou violência por ser mulher trans?

Há vários tipos de violência. A física, por exemplo, eu nunca sofri. Na maioria das vezes, as pessoas fazem suposições por você ser trans. Supõem que você se prostitui ou tem uma doença sexualmente transmissível (DST). Isso, infelizmente, acontece muito. Preconceito, já sofri muito. Violência física, não.

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Junho é o mês do orgulho LGBTQUIA+. Há o que celebrar?

Há, sim. Tivemos muitos avanços. Apesar do atual governo, as pessoas LGBTs estão saindo mais do armário. Temos mais liberdade. Apesar de toda a violência, conquistamos nosso espaço. Ainda tem muito que melhorar, sem dúvida. Mas, a resistência do movimento LGBT, por si só, já é motivo de celebração.

É verdade que, quando criança, você teve aula de desenho com o Daniel Azulay (1947-2020)?

Não! Eu já era adulta quando tive aula com o Daniel Azulay… Um dia, fiz um curso de mangá na Oficina de Desenho Daniel Azulay, no Largo do Machado, Zona Sul do Rio. Era tudo misturado: criança, adolescente… A única adulta era eu! (risos) Na infância, assistia aos programas dele na televisão. Infelizmente, esse tipo de programa, que ensina criança a desenhar, não existe mais…

Um de seus próximos projetos é a criação de uma super-heroína trans, certo? O que você poderia adiantar sobre essa personagem?

Atualmente, estou fazendo faculdade de animação. Meu projeto final será um curta-metragem, de uns três minutos de duração, protagonizado por uma super-heroína trans. Mais adiante, quero fazer uma história em quadrinhos. Mas, ainda estou pensando no roteiro, essas coisas. Quando você se assume como trans, parece que ganha superpoderes. Parece que tudo é possível. Esse é o conceito da história.

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