O que aprendemos com a Covid-19 no enfrentamento do câncer infantil
Médica relata como hospital de atendimento a crianças e jovens com câncer lidou com a ameaça do coronavírus
Entre o final de 2019 e o início de 2020, o mundo começou a ser surpreendido por um novo tipo de coronavírus, denominado Sars-CoV-2. Até então, a maioria das infecções respiratórias em humanos relacionadas a esse grupo de vírus envolvia espécies de baixa patogenicidade, que levavam a sintomas de um resfriado comum. O novo coronavírus, porém, demonstrou que pode causar infecções graves, especialmente em alguns grupos, como idosos e indivíduos (crianças ou adultos) imunossuprimidos.
E aqui entramos no território das crianças em tratamento contra o câncer. Antes de mais nada, é importante ressaltar que crescer tendo que combater essa doença é um enorme desafio. Além de tratamentos como a quimioterapia, ela tem de lidar com os eventos adversos da doença. Um deles é a baixa imunidade, que predispõe ao desenvolvimento de formas graves de infecções — caso da própria Covid-19.
A complexidade do tratamento, somada às repercussões imunológicas, acaba impondo limitações na rotina da criança e da família, principalmente em relação a atividades sociais. Ambientes com grandes aglomerações exigem cuidados redobrados.
No caso da infecção pelo vírus Sars-CoV-2, pouco se conhecia sobre a sua forma de apresentação nos indivíduos imunossuprimidos e como confrontá-la. Países da Europa e os Estados Unidos, que começaram a ter contato com a doença antes do Brasil, ainda não tinham desenvolvido protocolos para a doença, e nós seguimos em um aprendizado contínuo. Não podíamos parar o tratamento oncológico dessas crianças e tivemos que nos adaptar para enfrentar mais esse desafio.
Não existia literatura médica e nenhum registro sobre o enfrentamento da doença nos pacientes pediátricos e, à medida que o ano foi avançando, fomos aprendendo com os casos, tendo a nossa própria experiência e nos aprimorando com as novas publicações.
Nossa experiência no GRAACC não foi tarefa fácil. Há tempos seguimos rígidos protocolos de segurança, por conta da alta complexidade dos casos de câncer infantojuvenil, e com a pandemia criamos protocolos exclusivos de atendimento ao público, com o objetivo de evitar aglomerações, manter o distanciamento social, higienizar frequentemente as mãos e atender a todos da melhor maneira possível.
Especializados em câncer infantojuvenil, nos aprimoramos e reforçamos, ainda mais, as medidas já existentes, incorporando novos espaços, pois o tratamento do câncer precisa continuar. O câncer não espera!
Aprendemos a lidar com algumas formas de Covid-19, desde casos leves até casos graves, todas com êxito, pois contamos com uma equipe multidisciplinar muito dedicada e atualizada. Em um dos casos graves, utilizamos um bloqueador de receptor de interleucinas (responsável pela resposta imune do organismo) para diminuir os mediadores inflamatórios e obtivemos ótimo desfecho clínico. Em outro, o paciente passou por hemodiálise contínua, em que foi utilizado um filtro para eliminar toxinas e outras substâncias do corpo, o que possibilitou a recuperação dos rins e auxiliou no tratamento da Covid-19.
Uma unidade exclusiva de atendimento a pacientes com sintomas respiratórios foi criada para assistir casos suspeitos. Realizamos também campanhas internas voltadas para pacientes, acompanhantes e profissionais da instituição. E protocolos específicos para diagnóstico e acompanhamento de crianças com Covid-19 foram desenvolvidos e implementados, além de treinamentos específicos para as equipes médicas.
Nesse percurso, aprendemos que cada caso deve ser tratado individualmente. Até o momento, em que não se dispõe de terapia específica para a doença, sabemos que a detecção precoce e um suporte clínico adequado de uma equipe coesa e bem treinada fazem toda a diferença na evolução das crianças.
Enfrentamos um desafio sem precedentes e saímos mais fortalecidos com a definição de novos protocolos de prevenção e tratamento para resguardar nossos pacientes. E, mesmo com todas as limitações impostas pela pandemia, os tratamentos não pararam no GRAACC. Seguimos com os avanços terapêuticos para encarar a Covid-19, minimizar ao máximo o risco das nossas crianças e jovens e buscar, com todos nossos recursos, os melhores desfechos clínicos.
* Fabianne Carlesse é médica infectologista do Hospital do GRAACC