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A vida com ELA (esclerose lateral amiotrófica)

Médico e portador de esclerose lateral amiotrófica conta sua história de luta com a doença e seus planos de criar um centro de referência no Brasil

Por * Dr. Hemerson Casado Gama*
Atualizado em 22 abr 2020, 20h02 - Publicado em 11 abr 2018, 17h31

Era uma tarde de sexta-feira, dia 31 de agosto de 2012, aproximadamente 16h30. Eu estava terminando de ser submetido a uma eletroneuromiografia, um exame incômodo, mas extremamente importante para o diagnóstico de vários problemas neurológicos, principalmente as doenças do neurônio motor — caso da esclerose lateral amiotrófica.

O médico, um grande amigo meu, pediu que eu me vestisse e fosse para outra sala a fim de ouvir os comentários finais sobre o exame e as impressões clínicas. Eu estava sozinho, não porque quisesse esconder nada de ninguém, mas porque não tinha a mínima ideia do que estava por vir.

Entrei, então, na sala K, me sentei e logo percebi que as faces do médico e de seu associado pareciam estar prestes a detonar uma bomba atômica. Eu conhecia aquela expressão. Como cirurgião cardiovascular, precisei utilizá-la inúmeras vezes.

O médico falou direto. Foi como um upper no queixo — um golpe de boxe que, se bem aplicado, leva o oponente ao nocaute. Eu senti esse golpe em cheio e tentei me manter em pé. Lembro de ter feito dois comentários. O primeiro foi que eu devia ter faltado naquela aula da faculdade de medicina, pois não me recordava desse diagnóstico: esclerose lateral amiotrófica (ELA). O segundo foi questionar se essa doença era aquela do astrofísico inglês Stephen Hawking. A resposta veio de imediato:

— Sim

Respirei fundo e perguntei:

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— Mas eu vou ficar daquele jeito?

A resposta:

— Sim.

Então questionei de novo:

— Mas eu vou viver tanto quanto ele?

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O retorno:

— Não. O normal é sobreviver entre 3 e 5 anos.

Eu senti um frio correndo pelo meu corpo. E uma dor, forte e profunda, na alma. Senti um grande buraco se abrindo aos meus pés, onde eu podia ver as chamas, lá nas profundezas. Tudo isso parece poético, metafórico, mas foi exatamente o que experimentei naqueles poucos minutos, desde que o médico me sentenciou à morte.

Eu me recordo de tudo. Me lembro de ter tido uma súbita vontade de fugir daquela sala. Antes de ir, perguntei ao meu amigo quanto tempo eu tinha. Ele não entendeu. Me fiz mais claro: quanto tempo eu tinha até ficar inválido? Ele falou, com um semblante de tristeza: “Talvez um ano”. Senti que, naquela hora, eu havia ligado um cronômetro em contagem regressiva. Dali para frente tudo que fizesse teria que verdadeiramente valer a pena.

Logo depois eu fui para casa e tive que usar toda minha força para não transparecer à minha família, aos amigos e colegas de trabalho que eu estava com os dias contados. Como falar para as pessoas que amo o que estava por vir? Como um bom cirurgião, usei a estratégia que costumava empregar com os pacientes e familiares: falar a verdade em pequenas porções. E foi o que fiz, além de procurar um especialista para confirmar o diagnóstico e seguir ao meu lado.

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Na altura em que comprovamos o diagnóstico, grande parte das pessoas com quem convivia já estava ciente do que se passava comigo. Um misto de tristeza e perplexidade. A maioria não sabia o que era aquela doença nem entendia por que eu a havia desenvolvido.

Eu já havia passado pelo meu período de trevas, onde o Dr. Google havia sido meu maior carrasco e Deus, meu maior consolador. Somos seres vivos e suscetíveis a tudo, mas a capacidade de direcionar nossa força mental e espiritual para algo maior é que permite encontrar nossa salvação. É o que nos encoraja a enfrentar a doença e enxergar além. A partir do momento que se alcança essa dimensão, tudo muda. Certamente não é de imediato. E a gente sofre a cada etapa da doença.

A ELA é cruel, lenta, indolor fisicamente, mas muito dolorosa para a alma. Não é só a perda sequencial de funções físicas, inclui as perdas de tudo que você teve, tem e teria na vida. Não falo de perdas materiais, mas de perdas sentimentais, emocionais e espirituais. O tanto de coisas que a gente nem dá tanta importância, porque vivemos numa inversão de valores — sentimentos são substituídos por metas, planos, ambições e competições.

Esse período de transição entre estar bem e ficar tetraplégico é uma fase muito difícil, uma sucessão de sentimentos e desafios. Sendo médico, via aspectos bons e outros ruins. Sabia exatamente cada etapa que passava, cada sintoma, cada sinal… Sabia o que estava por vir. Se por um lado isso era aterrorizador, por outro me fazia lembrar aquilo que os pacientes me ensinavam e aquilo que sempre pedia a eles: coragem, compreensão, paciência e fé.

Isso realmente fez uma grande diferença no modo de encarar a doença. Evidentemente, não fui santo. Blasfemei, pedi a Deus que me levasse, que acabasse com aquele sofrimento. Cheguei a pensar em suicídio, mas, com a perda dos movimentos do corpo, não havia como fazer nada. Cheguei a pedir a um dos meus irmãos que me auxiliasse a desconectar o ventilador mecânico que ajudava com a minha respiração, mas, claro, não fui atendido.

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Como médico e cirurgião, com uma formação técnica rígida, disciplina militar e exigência de conhecimentos acima da média, me transformei em um profissional rigoroso. E foi um grande choque quando percebi quão falho é o sistema de tratamento em domicílio para pacientes com ELA, quão falha é a capacidade técnica dos profissionais que trabalham com as pessoas com a doença.

Eu descobri que existe uma vala comum, onde todos os pacientes que necessitam de cuidados em casa são considerados terminais. A escolha das companhias de homecare e os profissionais empregados nessas circunstâncias passam por um grau de exigência mínima e um controle de qualidade horrível. Se você não se impuser, pode ser submetido a descaso, imperícia, imprudência, negligência, humilhação e abuso moral e intelectual.

Ainda mais por ser médico, estar com o intelecto intacto e audição, visão e tato perfeitos, é possível perceber todos os absurdos que fazem com você em função do desconhecimento sobre a doença e tudo que ela representa. E esse não é o único problema. Tenho plena consciência de que a sobrevida dos pacientes não depende de médicos ou medicamentos, mas dos cuidados e da estrutura que conseguimos montar em nossas residências. Mas como você pode lutar por sobrevivência se o tratam como um doente terminal? Como se você fosse alguém em que não se deve investir para prolongar o sofrimento ou aumentar os custos do plano ou do sistema de saúde?

Eu queria muito lembrar que tudo na medicina partiu de um ponto zero e que só com muito sacrifício é que acontece o progresso. Vivemos uma situação complicada em termos de perspectivas. Não existem no Brasil centros de referência e excelência para oferecer uma abordagem digna a nós, portadores de doenças raras.

Somos um desafio para a medicina, para a ciência e para a humanidade. Temos o direito de viver. Fomos durante muito tempo negligenciados, seja por sermos raros e poucos, seja por apresentarmos doenças difíceis de entender e estudar, seja por gerarmos gastos ou aparentarmos uma baixa perspectiva de rentabilidade nas pesquisas e desenvolvimentos de remédios.

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Tudo isso é muito desafiador. Hoje nosso país não tem a mínima estrutura organizada para oferecer assistência médica e reabilitação para os portadores de doenças raras, tampouco abriga um sistema integrado, que garanta atenção igualitária em todas as regiões do Brasil. Faltam profissionais de saúde capacitados e dedicados para atender esses pacientes. Faltam verba e um olhar para essas questões nas universidades públicas. Não temos centro de pesquisas especializados nem uma integração com o resto do mundo para acompanharmos os progressos nessa área.

Diante de tantas dificuldades, percebi que não valia a pena continuar a reclamar. Tinha que reunir minhas forças para criar uma estrutura diferente de tudo que existe no Brasil. Vislumbro um campus de biotecnologia e saúde para investigar e atender as necessidades dos portadores de ELA e outras doenças raras. Um complexo de laboratórios de várias especialidades, todos trabalhando de forma integrada e independente ao mesmo tempo, com um conjunto de metas definidas, financiamento público e privado, nacional e internacional. Um condomínio industrial sustentável e baseado em startups para que todas as pesquisas se transformem em produtos e serviços. E um grande centro hospitalar para dar assistência, diagnóstico, tratamento e reabilitação aos pacientes.

Alagoas, o estado onde estamos desenvolvendo essa iniciativa, será uma referência em doenças raras e em ELA. O progresso já começou. A Associação Dr. Hemerson Casado Gama conseguiu, junto ao Ministério da Saúde, a liberação de uma verba de 2,3 milhões de reais para o primeiro laboratório voltado para ELA no Brasil. Já estamos trabalhando, junto à Universidade Federal de Alagoas, em uma rede de intercâmbios nacionais e internacionais envolvendo instituições de pesquisa e assistência médica e associações de defesa dos portadores de doenças raras e neurodegenerativas. Nossa missão é criar uma rede que certamente vai garantir um futuro melhor a quem esperou tanto tempo para comemorar essa vitória da ciência e esse milagre de Deus.

* Dr. Hemerson Casado Gama é cirurgião cardiovascular. Trabalhou como médico por 25 anos até ser acometido pela Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA). Como médico e paciente, percebeu as dificuldades de enfrentar as doenças raras no Brasil e tornou-se ativista. Criou a Associação Dr. Hemerson Casado Gama e luta pela criação de um centro de referência para pesquisa e assistência a portadores de ELA

 

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