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Limões, laranjas, remédios… e o teste clínico

Bióloga faz uma viagem ao passado para contar a origem do método que hoje valida qualquer tratamento médico

Por Dra. Natalia Pasternak Taschner*
Atualizado em 19 abr 2017, 14h06 - Publicado em 16 mar 2017, 18h17

Você já deve ter lido por aí que tal medicamento ou tratamento ainda precisava passar por testes clínicos antes de ser aprovado e chegar ao mercado, certo? Mas o que exatamente isso significa?

Para entender melhor como a ciência coloca à prova uma hipótese ou uma novidade terapêutica, por exemplo, proponho que a gente volte no tempo para o que foi provavelmente o primeiro teste clínico da história.

O ano era 1746, quando James Lind, um cirurgião experiente responsável pela tripulação de um navio da Marinha britânica passou do anonimato para… o anonimato! Pois é, quase ninguém sabe quem foi James Lind até hoje. No entanto, ele pode ser considerado o pioneiro na aplicação do método científico para investigar a causa de uma doença.

Em meados do século 18, a medicina atribuía todos os problemas de saúde a um desequilíbrio dos “humores”. Acreditava-se que o corpo humano era composto por quatro humores: o sangue, a fleuma, a bílis amarela e a bílis negra. E estes, por sua vez, correspondiam também aos quatro elementos da natureza (terra, fogo, ar e água) e às estações do ano.

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Quando esses humores estavam em desequilíbrio, o indivíduo ficava doente — daí a expressão “mal-humorado”. E, para curá-lo, obviamente bastava equilibrar… os humores. Nesse contexto, era comum se recorrer a sangria e métodos purgativos com o intuito de provocar diarreia e vômitos. Os médicos acreditavam que toda doença era causada por um bloqueio ou excesso de um dos humores. Lembremos que nessa época ainda não havia o conhecimento sobre a importância de métodos de higiene e nutrição, nem se sabia que algumas doenças podiam ser transmitidas por micro-organismos.

Um estudo em alto-mar

As grandes navegações foram marcadas pela presença de uma doença cruel e mortal, o escorbuto. Quem trabalhava nos barcos corria grande risco de padecer desse mal. Até então, se acreditava que ele era fruto de um desequilíbrio dos humores, particularmente da bile negra, associada a letargia e preguiça. De fato, a sonolência e o cansaço eram sintomas do escorbuto, além das gengivas enegrecidas e manchas negras pelo corpo. Os médicos e cirurgiões de então prescreviam sangria, purgação e trabalho duro para contrabalançar a moleza dos acometidos. Coitados dos marinheiros!

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James Lind foi o primeiro a questionar se tudo aquilo fazia sentido e resolveu juntar toda a informação que havia sobre o escorbuto até então. Grande parte estava descrita em diários de bordo, e Lind encontrou descrições de cura com sucos de frutas e vegetais frescos, feitas por quatro cirurgiões de bordo durante a Guerra dos Sete Anos (1756-1763), conflito envolvendo algumas das monarquias europeias da época.

Assim, com a autorização do capitão de seu navio, Lind desenhou seu primeiro experimento, com 12 marinheiros em estágio avançado da doença. Os marujos foram divididos em seis grupos, e cada par foi alimentado com a mesma dieta básica, ficou alojado no mesmo local e recebeu os mesmos cuidados. Dois receberam um quarto de copo de cidra por dia. Outros dois receberam vitriol, uma combinação de sulfatos. Um par recebeu uma colher de vinagre. Outro par recebeu 150 mililitros de água do mar… Finalmente, um par recebeu um limão e duas laranjas por dia, e o último par recebeu um preparado de noz moscada.

Depois de seis dias, o suprimento de limões e laranjas acabou, mas o período já havia sido suficiente para perceber que os marinheiros que receberam as frutas foram os que apresentaram a melhor recuperação.

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O que Lind fez foi o que chamamos hoje de teste clínico controlado e randomizado. Basicamente, ele separou os doentes em grupos e testou cada grupo com um “remédio” diferente, garantindo que todas as outras condições fossem iguais. Se fosse hoje em dia, ele teria acrescentado também um grupo controle, isto é, dois marinheiros que não receberiam tratamento algum, e um grupo placebo, no qual os marinheiros receberiam uma substância inerte, como água, por exemplo.

Outro fator que aplicamos hoje em dia chama-se “cegar” os participantes, assegurando que não saibam qual remédio estão recebendo, para não influenciar o resultado do teste. Quando “cegamos” o médico também, para que ele também não saiba qual paciente está recebendo qual remédio, o teste é chamado de “duplo-cego”. Foi assim que depois nasceu o teste clínico controlado, randomizado, com grupo placebo e duplo-cego! Essa metodologia assegura que os medicamentos e tratamentos aprovados sejam realmente eficazes e funcionem para todos.

Mesmo após o sucesso experimental de Lind, demorou 40 anos para que a Marinha Britânica adotasse as frutas cítricas como forma de prevenir o escorbuto — a descoberta do cirurgião foi recebida, a princípio, com muito ceticismo pela comunidade médica.

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O escorbuto continuou a fazer suas vítimas, dizimando até 80% das tripulações das grandes navegações até 1795, quando Sir Gilbert Blane foi nomeado médico-chefe da Frota britânica. Sir Blane era um acadêmico respeitado e tinha agora o poder para testar novamente a hipótese de Lind, que ele já conhecia. Durante uma viagem de 23 semanas para a Índia, ele estabeleceu que todos os marinheiros receberiam uma bebida feita de rum, água, açúcar e suco de limão – reparem que ele pode ter sido o inventor da caipirinha!

No trajeto, apenas alguns marinheiros apresentaram sintomas de escorbuto, mas foram tratados com porções extras de limão e logo estavam curados. Depois dessa viagem, ficou estabelecido que todos os navios ingleses levariam um suprimento de limões e os próprios ingleses ficaram conhecidos como “limeys” durante um bom tempo.

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Dos séculos 18 ao 19, o escorbuto matou mais marinheiros do que a soma de todas as batalhas navais, tormentas e demais doenças. E sua cura jamais teria sido descoberta se um cirurgião naval não tivesse usado o método científico para investigar sua causa — bem mais tarde pesquisadores descobriram que o problema é causado pela deficiência severa de vitamina C, nutriente que se encontra em abundância nas frutas cítricas.

Graças aos “limeys” Lind e Blane, foi dado o pontapé para os tão importantes estudos clínicos. Dessa história toda só me fica uma dúvida cruel: afinal, de quem é o legítimo crédito pela invenção da caipirinha?

* Dra. Natalia Pasternak Taschner é bióloga, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo e coordenadora dos projetos Cientistas Explicam e Pint of Science no Brasil

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